Uma família ingleza | Page 8

Júlio Dinis
adiante, se agglomerarem de novo.
Se é licito comparar as grandes ás pequenas cousas, veremos n'estes a imagem de todos os inoffensivos scismadores d'este mundo, a quem sempre cruelmente vem despertar o embate dos afadigados em emprezas positivas.
A anima??o era geral na cidade.
Todos corriam com ancia... a enfastiarem-se, fingindo que se divertiam.
Alguma cousa havia tambem na Aguia d'Ouro, a anci? das nossas casas de pasto, a velha confidente de quasi todos os segredos politicos, particulares e artisticos d'esta terra; alguma cousa havia n'essa modesta casa amarella do largo da Batalha, que desviava para lá os olhares de quem passava.
Desde as tres horas da tarde que o tinir dos crystaes e das porcellanas, o estalar das garrafas desarrolhadas, o estrepito das gargalhadas, das vozerias tumultuosas, e dos hurrahs ensurdecedores rompiam, como uma torrente, do acanhado portal d'aquelle bem conhecido edificio; e por muito tempo essa torrente, á maneira do que succede com a das aguas dos rios caudalosos ao desembocarem no mar, conservava-se distincta ainda, através do grande rumor, que enchia as ruas.
Os criados subiam e desciam azafamados as escadas, cruzavam-se ou abalroavam-se nos corredores, hesitavam perplexos entre ordens contradictorias, vinham apressar os collegas na cozinha ou entretinham com promessas os impacientes convivas da sala.
No entretanto o modesto e solitario freguez, a quem uma velleidade estomacal convidára a ir ceiar a humilde costelleta, principal trophéo culinario da casa, era pouco attendido e, farto de esperar, retirava-se sorrateiro e cabisbaixo.
Sob apparencias de modestia, a Aguia d'Ouro parecia d'esta vez aureolada de n?o sei que magestade, condigna do seu emblema.
A luz escassa de um lampe?o da rua, batendo sobre a ave de Jupiter, que cor?a a taboleta do estabelecimento, parecia dar-lhe reflexos, mais brilhantes do que os do costume.
Que era noite solemne para a casa, aquella casa que tem já dado que entender a ministerios e a emprezarios lyricos, n?o podia haver duvida.
Cá em baixo, os serventes do café fallavam a meia voz e mostravam no olhar certo ar de preoccupa??o, certa importancia no gesto, como se effectivamente se estivesse passando cousa de momento no andar de cima.
O café contrastava porém com a anima??o que se percebia nas salas da hospedaria.
Estavam desertos os logares d'aquella abafada quadra, em cujas paredes ainda ent?o existiam, e amea?avam perpetuar-se, reproduc??es, em lona, dos combates que restabeleceram a independencia da Grecia; a luz amortecida dos candieiros n?o dissipava as sombras dos recantos.
O marcador do bilhar cabeceava com somno.
Os bailes de mascaras tinham derivado d'alli até os homens politicos. N'aquella noite as discuss?es sobre a guerra da Crimeia, ent?o na ordem do dia, travavam-se ao som das walsas e das mazurkas, nos theatros.
N?o é pois n'este logar, agora melancolico e quasi lugubre, que eu pretendo demorar o leitor.
Subamos, e, por entre os criados que encontrarmos nas escadas e corredores, penetremos na sala d'onde provém o ruido de festa que já noticiamos.
O leitor por certo conhece o recintho. As suas particularidades architectonicas n?o requerem tambem as fadigas da descrip??o.
é um jantar de rapazes a festa, a que viemos assistir.
Chegamos, porém, tarde.
O fumo dos charutos ennevoa a sala e empana o fulgor das luzes; o jantar vae no fim, a desordem portanto no ponto culminante.
Ha já calices partidos, vinhos preciosos extravasados, convivas em todas as posi??es, algumas indescriptiveis.
A vozeria é atordoadora. A confus?o póde dar uma ideia de Babel.
Tratam-se simultaneamente todos os assumptos; as transi??es fazem-se com uma rapidez, que surprende e embara?a os proprios interlocutores; atten??o, que se desvie um segundo, é atten??o perdida; n?o encontra depois já o dialogo onde o deixou; ás vezes a conversa generalisa-se; momentos depois, distribue-se em especialidades por diversos grupos; mais tarde, generalisa-se de novo; em certas occasi?es, todas as b?cas fallam, cada um se escuta a si; n'outras algum orador consegue por instantes fazer-se escutar de todos, até que um áparte, um incidente, um gesto, restabelece a independencia primitiva. D?o-se tambem verdadeiros encruzamentos de conversas; o dos pés da mesa responde ao dito que ouve ao da cabeceira, emquanto que os intermedios se entreteem de outros objectos; é um baralhar de palavras, em que a custo se tira a limpo a express?o do pensamento.
Alli falla-se em litteratura e ouve-se, de quando em quando, pronunciar o nome de algum romancista ou poeta de vulto ou da moda; perto, discute-se politica e julgam-se n'um momento, e com a mais desenganada critica, as primeiras capacidades financeiras, diplomaticas e militares da época; conversam mais longe de aventuras de amor dois rapazes fronteiros e, atravessando-se diagonalmente com t?o agradavel prática, o dialogo de outros dois exerce-se sobre modas de casacos; um grupo exalta-se, tratando assumptos de theatro lyrico e premeditando pateadas e ova??es; juntos d'este, dois enthusiastas de hippicultura fazem a historia pittoresca de compras, vendas e manhas de cavallos. A propria philosophia allem? fornece alimento á anima??o dos discursos; e tudo isto interrompido de gargalhadas, de cantigas,
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