Uma família ingleza | Page 3

Júlio Dinis
clima, a esse mesmo clima, que, em contrario, tantos accusam de fomentador de hypocondrias e suicidios.
O clima inconstante da Inglaterra, explicam aquelles, é proprio para favorecer o desenvolvimento d'esses caracteres excepcionaes e extravagantes, precioso e inesgotavel pábulo do espirito comico da Gran-Bretanha.--A jovialidade dá-se muito bem n'aquelle poderoso imperio.
Tom Jones e o proprio Falstaff s?o typos mais inglezes talvez do que uns sombrios caracteres, que Byron p?z á moda.
Ora Mr. Richard, o corajoso leitor do Times, o inimigo declarado da Fran?a, apesar de certa seriedade de conven??o, era metal inglez, livre de toda a liga.
Nos maiores empertigamentos, a que o respeito pela pragmatica ingleza o constrangia, lá lhe estava o gesto a denunciar, que era artificial tudo aquillo.
Emquanto ao physico..., emquanto ao physico era Mr. Whitestone caracterisadamente inglez.
N?o supprir?o estas palavras mais circumstanciada descrip??o?
N?o ha entre nós quem, ao ver por ahi, nos maiores e mais mesclados ajuntamentos, certa ordem de typos masculinos, hesite em attribuir-lhes por patria a velha Albyon, a filha dos nevoeiros, a rainha dos mares, a terra dos meetings, dos puddings e de muitas cousas mais?
Pois bem, todos esses caracteres, todos esses signaes distinctivos dos mais perfeitos exemplares da classe, achavam-se reunidos na pessoa de Mr. Richard Whitestone, como certid?o de naturalidade, limpa da menor vicia??o.
Era aquella conhecida tez, quasi c?r de tijolo; aquelles olhos azues, á flor do rosto, a resplandecerem como saphiras; aquelles cabellos e suissas ruivas, que, sem grande violencia de imagem, poder-se-hia talvez comparar ás lavaredas do fogo, que lhe inflammava constantemente as faces injectadas; os dentes regulares, como enfiaduras de perolas, e alvos, como os caramélos das montanhas; a postura erecta; os movimentos promptos, e no rosto o tal continuado ar de satisfa??o.
Do vestuario podia dizer-se quasi o mesmo.--N?o falseava o typo. Era ainda inglez de lei.
Um pequeno fraque de panno azul, fabricado nas melhores officinas de Yorkshire ou do West of England; as cal?as, curtas e estreitas, dentro das quaes as descarnadas tibias podiam fazer o effeito do embolo em corpo de pneumatica; as botas esguias e compridas, onde a elegancia era sacrificada á solidez; gravata e collete alvissimos, como os de um lord do parlamento, e, de inverno, vestidura completa de _gutta-percha_ que, n'estas épocas utilitarias e prosaicas, veio substituir as impenetraveis armaduras da idade média--taes eram as pe?as principaes do guarda-roupa do honrado negociante. Coroava finalmente tudo isto o chapéo, aquelle chapéo de fórma invariavel, castello roqueiro inaccessivel ás ondas destruidoras da moda; baluarte inabalavel no meio dos ventos encontrados dos humanos caprichos; o chapéo, cujo molde classico dá a um grupo de inglezes um aspecto, que é só d'elles; o chapéo, express?o symbolica da indole industrial e fabril da famosa ilha, pois desperta lembran?as das chaminés, que ouri?am o panorama das suas mais manufactureiras cidades.
Respirando, havia mais de vinte annos, a atmosphera perfumada do nosso clima meridional, e bebendo, em todo este tempo, da propria fonte o predilecto das mesas britannicas, o genuino _Portwine_--esse nectar, cujo aroma, ainda mais que os da nossa atmosphera, é grato ás pituitarias inglezas, Mr. Richard Whitestone n?o conseguira, ou melhor, estas influencias, com todos os outros feiticeiros attractivos da nossa terra, ainda n?o haviam conseguido de Mr. Richard Whitestone dois importantes resultados:--a adop??o dos habitos de vida peninsular, contra os quaes antes reagia sempre com a inteira inflexibilidade de suas fibras britannicas, e o respeito á grammatica portugueza, que, em todas as quatro partes, maltratava com uma irreverencia, com um desplante de bradar aos céos e de desafiar os rigores da férula mais indulgente.
N?o desmentia Mr. Richard a asser??o do auctor das Lendas e Narrativas, quando affirma que sempre que um inglez, em casos desesperados, recorre a algum idioma estranho, nunca o faz, sem o torcer, estafar, e mutilar com toda a barbaridade de um verdadeiro Kimbri.
De facto, as cinzas de Lobato e de Madureira deviam agitar-se na sepultura sempre que Mr. Whitestone fallava, porque as regras mais triviaes de regencia e de concordancia eram por elle atropelladas com uma frieza de animo, com uma fleugma, com uma impassibilidade, somente comparaveis ás de um membro do _Jockey-Club_, ao passar com o cavallo por cima do corpo de algum transeunte inoffensivo ou competidor derrubado na arena.
N?o era mais feliz a prosodia, a alatinada prosodia d'este recanto peninsular.
As combina??es grammaticaes de Mr. Richard, ao fallar a nossa lingua, saíam marcadas com um verdadeiro cunho britannico. Venus, a propria Venus, perderia aquellas illus?es, que nos refere o cantor dos Lusiadas, se porventura ouvisse o portuguez que elle pronunciava.
Transparecia de alguma sorte nas ora??es do seu discurso o credito liberal de um verdadeiro cidad?o de Londres. O espirito conciliador e ordeiro, o constitucionalismo arreigado n'aquelle animo inglez, e adhes?o aos principios interventores adoptados no seu paiz, parecia haverem-se estendido, extravagantemente, ao campo da syntaxe portugueza, levando Mr. Richard, n'um excesso de tendencia harmonisadora, a tentar
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 146
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.