Uma família ingleza | Page 2

Júlio Dinis
sem a menor affecta??o, o nacional God save the queen, ao qual marcava compasso com a cabe?a ou com a bengala.
N?o se dava ao trabalho de retribuir um cumprimento com outro cumprimento. Aquelles que teem por costume semeiar lisonjas, para depois as colherem, em proveito proprio, encontravam em Mr. Richard Whitestone terreno ingrato para tal genero de cultura; n?o vingavam lá.
A chamar-se delicadeza a certos requebros de linguagem, a certas subtilezas de galanteios, a certos meneios, ares e olhares convencionaes, muito á moda nas salas e que variam com as épocas, hesitar-se-hia em conceder a Mr. Richard o nome de delicado.
A delicadeza que elle praticava n?o era de facto essa. Fazia-a consistir toda, a sua, nos sentimentos e nas ac??es inspiradas pelos eternos e invariaveis dictames da consciencia e da raz?o, superiores portanto ás fluctua??es caprichosas da moda. Era uma delicadeza natural.
Verdadeiro inglez da velha Inglaterra, sincero, franco, ás vezes rude, mas nunca mesquinho e vil, podia tomar-se por uma vigorosa personifica??o do typico John Bull.
Alheio e pouco propenso á metaphysica, n?o o namoravam as transcendentes quest?es de philosophia, que preoccupam doentiamente as intelligencias da época; todo votado á contempla??o da face positiva da vida, se n?o se arroubava, como os exaltados optimistas, a considerar nos destinos futuros da humanidade, evitava tambem o estorcer-se nas garras do demonio da hypocondria, como se estorcem tantos, a quem prolongadas medita??es sobre os males que perseguem o homem acabam por envenenar o pensamento.
Possuia em compensa??o Mr. Richard, e em alto grau, para luctar contra as occorrentes resistencias da vida effectiva, aquella qualidade de espirito, que, segundo Sterne, se diz _obstina??o_ nas más applica??es e _perseveran?a_ nas boas.
Outra apreciavel disposi??o de animo caracterisava ainda o nosso commerciante:--era a de n?o ser sujeito a longas mortifica??es, ou pelo menos--e com mais rigor talvez--a de n?o as manifestar nos gestos ou por quaesquer signaes exteriores.
Dir-se-hia, a julgal-o pelas apparencias, que espessa camada de estoicismo lhe encrustára o cora??o, libertando-o da influencia dos estimulos, que mais dolorosamente costumam commover essa viscera de t?o numerosas sympathias.
N'este mundo, ao qual os Heraclitos dos seculos christ?os grangearam o titulo lutuoso e elegiaco de Valle de lagrimas, n?o sabia successo possivel, catastrophe realisavel, com for?a de alterar por muito tempo a costumada express?o physionomica de Mr. Richard, de lhe desbotar sequer o colorido vigoroso, ou,--como julgo se lhe chama em linguagem technica,--o colorido quente, do qual lhe vinha ao gesto certo ar de satisfa??o, despertador das mais justificadas invejas.
Nos typos inglezes, que as ondas do oceano arrojam todos os dias ás nossas praias, é este phenomeno mais vulgar do que porventura se pensa.
Cada uma d'essas figuras britannicas vale por um protesto mudo, mas eloquente, contra os velhos preconceitos de poetas e de escriptores meridionaes.
Teimam de facto estes em que s?o indispensaveis os vividos raios do nosso desanuviado sol, ou a face desassombrada da lua no firmamento peninsular, onde n?o tem, como a de Londres--_a romper a custo um plumbeo céo_--para verterem alegrias na alma e mandarem aos semblantes o reflexo d'ellas; imaginam fatalmente perseguidos de spleen, irremediavelmente lugubres e soturnos, como se a cada momento saíssem das galerias subterraneas de uma mina de _pit-coul_, os nossos alliados inglezes.
Como se enganam ou como pretendem enganar-nos!
é esta uma illus?o ou má fé, contra a qual ha muito reclama debalde a indelevel e accentuada express?o de beatitude, que transluz no rosto illuminado dos homens de além da Mancha, os quaes parece caminharem entre nós, envolvidos em densa atmosphera de perenne contentamento, satisfeitos do mundo, satisfeitos dos homens e, muito especialmente, satisfeitos de si.
Nem é para admirar que o romancista inglez James ousasse abrir o primeiro capitulo de um romance seu com a seguinte exclama??o:
?_Merry England! Oh, merry England!_? Alegre Inglaterra! oh! alegre Inglaterra!
E por que se n?o ha de chamar alegre á Inglaterra? Como se generalisou a infundada cren?a de que o inglez é por for?a melancolico?
é uma d'estas abus?es, para lhe n?o dar nome peior, contra as quaes ninguem se precavê com sufficiente criterio philosophico.
Repare o leitor imparcial para qualquer dos membros da colonia ingleza, á qual Mr. Richard Whitestone pertencia, e verá que nem só nos tempos em que a civilisa??o e a industria n?o tinham ainda arroteado as densas florestas britannicas, seria cabido o jovial estribilho da can??o que o supracitado romancista p?z na b?ca do legendario Robin Hood, seu heroe:--?_Ho, merry England, merry England, ho_?; póde ainda cantar, através dos nevoeiros e do fumo das fabricas, o inglez moderno, fiel depositario d'aquelle folgado caracter nacional.
Eu tenho ha muito como ponto de fé, que ainda que o spleen seja doen?a indigena da Gran-Bretanha, n?o domina t?o fatalmente sob o céo Londrino, como muitos parece imaginarem.
Dryden affirma que as comedias inglezas possuem sobre as de todo o mundo incontestavel superioridade.
E querem saber a que attribuem alguns esta superioridade da comedia ingleza? Ao
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