Sol de Inverno | Page 7

António Feijó
do extremo
Norte. E ahi, á morte do seu velho chefe e depois d'uma demorada
encarregatura de negocios, o fixou para sempre a sua promoção a
ministro, determinada por uma reforma dos serviços diplomaticos.
Nestas altas funcções, Feijó deu as mais seguras provas da sua
competencia. Infelizmente, aquella legação não tinha importancia
correspondente ao seu valor, nem lhe podia dar ensejo a exercer
plenamente as suas faculdades e talentos. «Estou aqui encalhado, a
apodrecer»--escrevia-me elle um dia. E era verdade. Via-se
immobilizado, inactivo, desconsoladoramente reduzido, pela
mediocridade do seu posto, a uma situação subalterna, quasi que ao
simples serviço de expediente e á representação protocolar. Sentia-se
com hombros para mais pesados encargos e mais arduos trabalhos--e
doía-se de se não ver utilisado. O seu ideal de funccionario, zeloso,
meticuloso, honestissimo e trabalhador como poucos, não era,
positivamente, o gôzo d'uma sinecura.
Feijó foi, na diplomacia, uma força desaproveitada. Além d'aquelles
predicados, sobejavam-lhe as faculdades proprias do officio. Era subtil

e d'uma prompta e profunda perspicacia; via bem, em conjuncto, os
multiplos aspectos d'um acontecimento ou d'uma negociação; estudava
as questões com ponderação e methodo; cauteloso, preparava
seguramente o seu terreno antes de avançar; sabia (o que, na esgrima da
diplomacia, é essencial) dosear, na sua justa e precisa medida, a finura
e a lealdade; tinha, em subido grau, a correcção, a serenidade, a
discreção, o tacto e esse grande e supremo dom que é, na vida ordinaria,
como na vida politica, o nosso melhor guia, a nossa mais bem
polarisada bussola--o bom-senso.
Tudo isto se valorisava e realçava pelo seu fino trato, pela amenidade e
cortezia das suas maneiras, pela seducção da sua conversa, pelo brilho e
a cultura do seu espirito, que tornavam sempre querida e
agradabilissima a sua companhia, quer nos meios litterarios, quer nos
meios mundanos.
E este é outro aspecto interessante da sua individualidade. Desde
Coimbra, Feijó foi sempre o melhor e o mais deleitoso dos
companheiros. A elegancia despretenciosa da sua palavra, a graça
especial com que contava uma anedocta, o _humour_ ligeiro, e
levemente malicioso ás vezes, que punha no commentario a um
successo ou na critica a uma personalidade, o pittoresco evocativo de
suas narrações de viagem e a expansiva jovialidade do seu forte
temperamento--faziam d'elle um _cavaqueador_ irresistivelmente
atrahente.
Elle era então, e foi por muitos annos, uma natureza robusta e alegre,
um _dyonisiaco_, amando a vida e a belleza, um sorridente epicurista,
gozando com volupia o instante fugitivo, mas um epicurista delicado,
que punha, em todo o prazer, uma ponta de idealismo ou de emoção
esthetica. Nas suas veias, onde corria bom sangue das velhas linhagens
minhotas, devia haver mais globulos do do seu illustre patricio Diogo
Bernardes, o cantor do «saudoso, brando e claro Lima», que elle
descobrira na sua ascendencia, do que do d'esse _Feijóo escudeiro_, do
tumulo de Celanova, _bom fidalgo e cavalleiro, gran cazador e
monteiro_, a quem o poeta consagra a poesia final da _Alma triste_.
O seu contacto dava alegria, dava saude. Sob a suggestão do seu

espirito parecia que tudo se animava e resplandecia, que a propria
existencia se tornava mais amavel, mais apetecivel. De toda a sua
pessoa, irradiava a _joie de vivre_. Junqueiro chamava-lhe, então, o
_opiparo_ Feijó...
VII
Mas um dia, um grande infortunio,--a viuvez inconsolavel, o seu pobre
lar em ruinas,--devastou-lhe a alma, prostrou-o, roubou-lhe toda a
alegria, envelheceu-o precocemente, tornou-lhe os ultimos mezes da
sua vida tão negros, tão desolados, como essas interminaveis noites
boreaes que tanto o torturavam e entristeciam,--a elle, filho d'estas
bemditas terras do Sul!...
O que foi esse drama, em todo o desenrolar das suas mágoas e
soffrimentos, dil-o o eloquente, commovido e fino commentario que,
através das cartas do poeta, n'esse periodo, lhe faz Alberto d'Oliveira na
communicação sobre a sua morte, dirigida á Academia Brazileira e que
o leitor lerá com interesse e admiração, a seguir a este prefacio.
Ultimamente, porém, parecia querer reagir, despertar d'essa longa
atonia dolorosa. Refugiado no amor dos filhos e na saudade da patria,
onde ha oito annos não vinha, o seu derradeiro sonho foi revel-a, vir
percorrer ainda uma vez o seu Minho querido, contemplar as aguas
mansas do seu Lima, retemperar o coração n'essa magica visão de
belleza e encanto, que, para todo o portuguez, ausente ou exilado, é este
incomparavel torrão de Portugal!
N'este anceio, n'este volver d'olhos, sobre a Europa em guerra, para a
patria distante, surprehendeu-o bruscamente a morte.
Exhausto de soffrer, o seu crucificado coração parou de subito,
immobilisado para sempre!
E de novo ao sahir d'esta angustia demente,
Sinto bem que tu és, para
toda a amargura,
A Euthanásia serena, em cujo olhar clemente
Arde
a chamma em que toda a escoria se depura.

É pela tua mão, feito um rasgão na treva,
Que a alma se liberta e,
d'esplendor vestida,
--Borboleta celeste, ebria de Deus--se eleva

Para a Luz
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