Sol de Inverno | Page 5

António Feijó
talvez
suggerido por uma excessiva modestia e, por isso, improprio, como vou
explicar,--o poeta traçou estas palavras: _ultimos versos_. E foram-n'o,
de facto. Não porque o seu inverno fosse já tão adeantado que o sol do
seu talento não pudesse fulgurar ainda demoradamente no horizonte
d'uma dilatada vida. Não: o seu inverno ia apenas começar. Feijó não
contava então, mais de 57 annos. Ainda se podia considerar no seu
outomno. Mas parece que aquellas duas palavras, tristes como um
distico tumular,--o epitaphio da sua Musa,--exprimiam um
presentimento fatidico.
Esse anno de 1915, em que elle coordenou e preparou o seu livro para o
entregar ao prelo, foi-lhe terrivelmente angustiado e doloroso. A esposa
estremecida, a quem o consagrava no verso tão profundamente
amoroso de Martial, debatia-se nos soffrimentos d'uma longa e
torturante doença que no mez de setembro veio a ter o seu desenlace
fatal. A desgraça ameaçava-o, pois, sinistramente. E elle adivinhava
que não seria longa (como não foi) a sua resistencia ao golpe rude e
cruel que sentia imminente.
É claro que muitas das poesias colleccionadas no volume não são d'essa
epocha atribulada. E, assim, o sol que alli brilha tem muitas vezes, não
apenas a doce e serena luminosidade do outomno, mas até o fulgor
ardente d'um meio-dia estival.
N'esse livro, o seu talento, inteiramente amadurecido, fructifica
esplendidamente. Está alli todo o seu coração, como está todo o seu

pensamento,--porque, n'esta derradeira phase, a sua poesia não nos dá
sómente emoções, mas suggere-nos tambem ideias. Na soberba serie
dos _hymnos_, póde dizer-se que se encerra toda uma philosophia. Ahi
Feijó ala-se ás regiões mais altas da poesia, áquellas que só attingem os
grandes espiritos. São odes sublimes, de um largo e poderoso sopro,
onde a sua alma se abre toda na adoração da _Vida_, da _Belleza_ e da
_Alegria_, se contorce nos transes da _Dôr_, se embebe na melancholia
da _Solidão_ ou se abysma na meditação hamletica da _Morte_.
De todas as peças d'este hymnario, a ultima é talvez a maior, a mais
profunda. E encerra uma exegése da morte subtilmente verdadeira. A
sensação e a dôr da morte não estão no phenomeno da morte physica,
em si, no termo da nossa vida material. Estão na lenta morte moral do
nosso coração, no desapparecimento successivo dos que amamos e que
levam, a pouco e pouco, comsigo, para o mysterio do tumulo, pedaços
vivos da nossa alma.
Toda essa ideia está admiravelmente expressa n'estas quatro
esplendidas quadras.
Quantas vezes, na angustia, o soffrimento invoca
O teu suave dormir
sob a leiva de flores!...
A morte que, sem dó, me tortura e suffoca,

É outra--essa que em nós cava sulcos de dores.
Morte que sem piedade, uma a uma, arrebata,
Como um tufão que
passa, as nossas affeições,
E deixando-nos sós, lentamente nos mata

Abrindo-lhes a cova em nossos corações.
Parenthesis de sombra entre o poente e a alvorada,
Morrer é ter
vivido, é renascer... O horror
Da morte, o horror que gera a
consciencia do Nada,
Quem vive é que lhe sente o afflictivo travor.
Sangue do nosso sangue, almas que estremecemos,
Seres que um
grande affecto á nossa vida enlaça,
--Somos nós que a sua morte
implacavel soffremos,
É em nós, é em nós que a sua morte se passa!
Esta poesia, que Feijó, ahi por 1913, me mandou de Stockholmo para

Londres, onde então eu residia, fôra-lhe inspirada pela morte recente
d'um nosso amigo commum. E aos seus mortos, parentes e amigos, a
consagrou, como se vê do distico votivo que a precede: _Meorum
amicorumque pie manibus_.
Toda uma intensa emotividade freme n'esse verdadeiro hymno sagrado,
de tão largo folego. Os que accusavam Feijó de frio e impassivel teem,
n'elle, como em muitas outras composições do _Sol de Inverno_, um
formal desmentido ao seu reparo. E, entre essas outras, citarei,
especialmente, essa torturada e angustiada _Supplica ao Vento_, de que
transborda toda a desolada nostalgia do exilio. Poucas vezes, desde
Ovidio, lembrando, tambem, nas neves do Ponto Euxino, a doçura
radiosa do céu do Lacio, uma voz de desterrado cantou mais
amargamente e com tão empolgante emoção as suas mágoas, as
recordações da terra natal, a ancia de a rever em toda a sua
surprehendente formosura. São queixumes elegiacos, perdidos apellos
d'uma alma dilacerada, apostrophando o Vento que passa, a galopar
vertiginosamente nos espaços, e supplicando-lhe que leve á terra
risonha e luminosa e ao claro e cristalino rio, que a viram surgir á vida,
o seu amor soluçante e lacrimoso. Não se leem esses patheticos tercetos
sem uma crispação dolorosa de toda a alma. Mais d'uma vez ouvi
suspender a sua leitura a vozes subitamente embargadas pelas lagrimas.
Já, na _Alma Triste_, essa incuravel nostalgia transparece em algumas
poesias alli reunidas. É ella, mesmo, como um _leit-motiv_ favorito.
_Domingo em terra alheia_, _Soliloquio do Outomno_, _No mez de
Abril_, _Silencio_, _No campo_, _Inverno_, ressumam as
melancholias d'um espirito esmagado
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