Scenas Contemporaneas | Page 8

Camilo Castelo Branco
minha Beatriz parecia-me boa de cora??o, ajuizada de cabe?a, fina de espirito, e em quanto �� cara, ao corpo, e ao donaire... dir-te-hei que as seduc??es eram tantas, e t?o a proposito que nunca tive occasi?o de me sentir de uma illus?o desvanecida. Vim para Coimbra. A nossa despedida foi pathetica. Beijei-lhe a testa pela primeira vez. Comprimi-a ao cora??o com o enthusiasmo do primeiro abra?o. Recebi da sua m?o tremula, como prenda, o len?o com que enxug��ra as lagrimas, e retirei-me com o cora??o partido, mas vaidoso de esperan?as, que a saudade me dourava no meu lindo futuro.
Logo que aqui cheguei, escrevi-lhe. Imagina o que eu lhe diria! Eram vinte folhas de papel, escriptas em todas as estalagens onde pernoitei, e fechadas com uma especie de hymno de lagrimas, em que se me foi tudo o que a minha alma podia dar de superior ��quillo que todos os homens sabem dizer n'uma carta de namoro.
Respondeu-me. A sua carta era simples, mas os toques eram verdadeiros... pareciam-no... via-se alli a mulher que escreve a primeira carta, o cora??o timido que balbucia os sons d'uma selvagem innocencia, que �� a felicidade do homem que primeiro os tira do cora??o d'uma virgem.
Tres mezes assim. Tres mezes d'uma vida phantastica. Ancias insaciaveis das suas cartas. Tristezas d?ces quando me faltavam n'um correio. Zangas sem odio, se o cora??o de t?o longe a criminava de ingrata. Tres mezes assim... e no fim de tres mezes... adevinha o que aconteceu...
--Eu sei c��... morreu?
--N?o.
--Veio c�� ter comtigo?
--N?o.
--Abandonou-te?
--Abandonou.
--Isso �� incrivel!
--Acredita. Agora adevinha por quem eu fui preferido.
--Eu s�� te conhe?o a ti na tua terra...
--Imaginas que algum dandy a requestou de modo que a fragil creatura succumbiu ��s seduc??es invenciveis?
--S�� assim.
--Ora adeus! Tu n?o adevinhas, porque n?o sabes nada de mulheres...
--Foi o pai que a for?ou a casar-se com algum brasileiro muito rico?...
--Tambem n?o...
--Diz l�� isso, que estou impaciente...
--Pois l�� vai: a minha querida Miquelina, o meu anjo que corava se o meu halito lhe ro?ava nas faces, a minha pudibunda Virginia que recebeu o meu primeiro beijo a tremer, a minha mimosa sensitiva que parecia resequir-se �� mingoa dos meus carinhos... sempre queres que te diga?
--Pois ent?o?
--A minha promettida esposa... fugiu com um... digo?
--Acaba, homem!
--Com um lacaio da casa!... ��l��! n?o fiques assim atordoado! Rite, como eu...
--Isto �� inconcebivel!... E depois?
--Depois... que queres que eu te diga?
--Que fim teve essa mulher?
--Foi agarrada por ordem do pai, e o lacaio morreu arcabusado summariamente para n?o dar que fazer �� justi?a.
--E ella... vive?
--Creio que sim.
--Na companhia da familia?
--N?o... Tu n?o me disseste que viras no Porto... Fiquemos aqui...
--Isso de modo nenhum... Has-de concluir...
--Pois sim... que importa!... N?o me disseste que viste no Porto uma meretriz que revelava uma boa educa??o, e n?o queria dizer d'onde era, nem como viera ��quella vida?...
--Disse... mas n?o se chamava Miquelina...
--Isso n?o faz nada ao caso... Rosa, ou Miquelina, �� a mesma... �� a minha promettida esposa, �� o anjo dos meus primeiros amores, �� a pomba alvissima da innocencia que encontrei em Alpedrinha... �� ella... Basta... �� noite... Vou fazer monte, e depois, se te quizeres embriagar comigo, vamos ao Pa?o do Conde, e beberemos �� saude da exc.^{ma} Miquelina Alpoim e Malafaia, victima d'uma paix?o pelo infeliz lacaio, que desceu ao tumulo... das illustres victimas. J�� sabes como se faz um cynico? A esses parvos, que por ahi andam a gaguejar um scepticismo que cheira a cueiros, d��-lhe com uma palmatoria.
E n?o tornou a fallar-me n'esta mulher.

DE ABYSMO EM ABYSMO.
Eu �� que n?o podia satisfazer a minha curiosidade com a descosida revela??o de Valladares.
Muitas vezes acalorei a quest?o do cynismo, applicando-a a Miquelina; mas este nome enfurecia-o de tal modo, que as nossas rela??es estiveram a romper-se, e reataram-se com a condi??o de eu nunca lhe tocar ligeiramente em semelhante assumpto.
Sujeitei-me; mas, na primeira occasi?o prosperada pelo acaso, alcancei esclarecimentos, que illucidam a degrada??o da pobre mulher.
Em 1848, Miquelina vivia ainda no Porto. A sua vida j�� a sabem. Como veio ella t?o abaixo?
Foi assim:
Alguns dias depois da fuga vergonhosa com o defunto lacaio, Miquelina foi conduzida a Lisboa. A av��, que p?de sobreviver ao golpe, quiz salvar a neta da colera do filho. Este ausent��ra-se para Chaves, no momento em que a filha entr��ra em casa. De l��, escrevendo �� m?i, dizia-lhe que d��sse �� infame algum destino, porque, em quanto a sua presen?a envergonhasse aquella casa, nunca elle tornaria alli.
D'aquella familia estava em Lisboa um magistrado, tio materno de Miquelina. Foi este o encarregado de receb��l-a durante alguns mezes na sua casa.
N?o se passaram muitos dias, sem que Miquelina revelasse os seus instinctos. Namorava escandalosamente um homem, sem nome, que frequentava as janellas d'um alfaiate, que morava em frente.
O magistrado suspeitou, e prohibiu-lhe o uso das janellas. O homem, que, por for?a, havia de ter um nome, e poderia
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