Scenas Contemporaneas | Page 5

Camilo Castelo Branco
que n?o podem sahir da pequena esphera de lama, que a natureza lhes deu por homenagem.
D. Amelia viu este rapaz n'um cemiterio: leu um epitaphio que elle mand��ra abrir na sepultura de seu pai que o deix��ra em Genova no collegio, e viera morrer em 1836 �� patria: comprimentou-o de passagem, respondendo a um distincto cortejo do melancolico poeta; e parece que, desde esse encontro, Amelia transfigurou-se para todos os homens, deu que pensar �� sua familia, queria todos os dias visitar o cemiterio, e retirava quasi sempre mais triste, porque muito raras vezes encontrou alli o invisivel extravagante da opini?o publica.
--Como se chamava elle? Eu conhe?o alguns rapazes de * * * que foram meus condiscipulos em logica.
--N?o �� nenhum dos seus condiscipulos. J�� lhe disse que este sujeito veio do Porto para a provincia, com vinte e tantos annos pelo menos. O seu appellido �� C?rte-Real, conhece?
--Nada, n?o conhe?o; mas ou?o fallar todos os dias n'esse rapaz.
--Que ouve dizer?
--Que est�� em Lisboa, doudo, no hospital...
--O senhor afian?a-me isso? Ha que tempo endoudeceu?
--Ha dous ou tres mezes...
--Quem lh'o disse?
--Um medico, meu parente, que o mandou conduzir para a enfermaria dos doudos.
O academico fez-me signal de silencio, e mandou-me ouvir.
--N?o ouve?--disse elle.
--Ou?o... �� alguem que solu?a...
--�� ella...
--D. Amelia?
--Sim... Ouviu a nossa conversa... Tem ouvidos de tisica...
--�� admiravel!... Pois o quarto d'ella n?o �� longe d'este?
--Passam-se tres quartos, mas os repartimentos s?o de tabique, e eu n?o me lembrei de tal... Calemo-nos...
--E a historia?... Falle mais baixo, que ella n?o ouvir�� mais nada...
--Agora, �� impossivel... Aquelles solu?os transtornaram-me a cabe?a... Deite-se, e ��manh? fallaremos antes de nos despedirmos...
IX.
�� cabeceira do meu leito, estava um volume das Viagens de Cyro, e o quinto volume d'uma Miscellanea curiosa e proveitosa, onde encontrei uma longa poesia a D. Ignez de Castro, que me fez dormir at�� ��s 8 horas da manh?.
O meu companheiro, quando abri os olhos, estava sentado na cama, e escrevendo nas paginas d'uma carteira.
--O senhor est�� a fazer versos?--perguntei eu.
--Adevinhou.
--Faz favor de recitar, se n?o �� segredo!
--Recito: olhe l�� se entende:
Eras um anjo? Se o eras Que torvo facho do inferno Te queimou as azas? Diz: Porque, t?o cedo, infeliz Cahes no abysmo eterno!... ETERNO!
--Entendeu?
--N?o, senhor.
--Veja se entende agora:
Eras pura, quando lagrimas Tu me d��ste, e me pediste... Tu choraste aqui, choravas... Mas porque? prophetisavas Este abysmo em que cahiste?
--Entendeu?
--Nada... Ora diga-me os versos tem alguma cousa com a historia que ficou suspensa?
--N?o, senhor; pertencem a outra, que nasceu aqui n'esta casa, e que �� toda minha...
--Esta casa parece-me uma casa de novella... Estou a v��r se aqui arranjo tambem alguma historia para contar a minha tia, que est�� resando o quadragesimo responso a Santo Antonio por minha causa, se �� que j�� me n?o resou por alma... Ent?o o senhor n?o conta ao menos a primeira historia completa?
--Hei-de contar.
--Quando? Eu vou-me embora logo.
--N?o vai. J�� aqui esteve o padre, e disse que n?o sahiriamos d'aqui hoje, porque augmentou de noite a neve.
--Deixal-a; mas a minha familia, se eu n?o appare?o, nem dou parte de mim, julga-me morto, e �� capaz de me fazer officio de corpo ausente.
--N?o se assuste, que o padre hontem �� noite mesmo fez partir para a sua ald��a um criado com a certeza de que o senhor ficava vivo, e mais o seu fur?o.
--A proposito, sabe se j�� dariam de almo?ar ao meu fur?o.
--�� natural que sim... Ahi vem o snr. abbade; perguntemos-lhe... Snr. padre Joaquim, pergunta alli o nosso amigo se o fur?o ja almo?ou.
--Comeu quatro ovos, e est�� agora brincando com minha cunhada, que �� muito amiga de bichos.
--E como passou ella?--perguntou Valladares.
--Penso que melhor... Ergueu-se muito cedo: a creada disse que a vira chorar toda a noite; mas agora fui, com grande espanto meu, encontral-a com o fur?o no rega?o, a sorrir-se como quem �� muito crean?a e muito feliz... Sabe o senhor que...
N?o sei bem o que o padre disse ao ouvido do estudante. Desconfio, pela resposta, que o resto do segredo era o receio de que ella endoudecesse.
Tudo isto, apurava-me o desejo de saber o que era a demencia de C?rte-Real, e a tisica de Amelia.
X.
Almo?amos.
D. Amelia esteve comnosco alguns minutos, ouvindo n?o sei que palavras a meia voz, do meu amigo, inintelligiveis para mim, supposto que ahi se fallasse duas ou tres vezes n'uma D. Miquelina. Tudo mysterios!
O padre foi dizer missa. D. Amelia foi com elle. Fiquei com Valladares, tremendo de frio, ao p�� d'uma bacia de brazas. O attencioso levita teve a delicadeza de nos n?o convidar a participarmos da sua missa, que n'aquelle dia, com tal frio, faria hereges espiritos devotos.
--Ahi vai agora a continua??o da historia--disse o academico, engulindo o fumo de quatro cigarros successivos--A familia d'esta senhora �� muito realista, muito fanatica, arde em odio contra os impios, que s?o todos, menos os sectarios de
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