encontral-a com o furão no regaço, a sorrir-se como quem é muito
creança e muito feliz... Sabe o senhor que...
Não sei bem o que o padre disse ao ouvido do estudante. Desconfio,
pela resposta, que o resto do segredo era o receio de que ella
endoudecesse.
Tudo isto, apurava-me o desejo de saber o que era a demencia de
Côrte-Real, e a tisica de Amelia.
X.
Almoçamos.
D. Amelia esteve comnosco alguns minutos, ouvindo não sei que
palavras a meia voz, do meu amigo, inintelligiveis para mim, supposto
que ahi se fallasse duas ou tres vezes n'uma D. Miquelina. Tudo
mysterios!
O padre foi dizer missa. D. Amelia foi com elle. Fiquei com Valladares,
tremendo de frio, ao pé d'uma bacia de brazas. O attencioso levita teve
a delicadeza de nos não convidar a participarmos da sua missa, que
n'aquelle dia, com tal frio, faria hereges espiritos devotos.
--Ahi vai agora a continuação da historia--disse o academico, engulindo
o fumo de quatro cigarros successivos--A familia d'esta senhora é
muito realista, muito fanatica, arde em odio contra os impios, que são
todos, menos os sectarios de D. Miguel, e alguns, senão todos, de D.
Sebastião. A familia de Côrte-Real é ultra-liberal, odeia os realistas
com aquelle odio saturado na emigração, e não admitte honra,
intelligencia, nem merecimento em homem que não fosse capaz de
cortar as orelhas a um miguelista, se elle estiver por isso. Já vê que as
duas familias detestam-se. De parte a parte no momento em que as
relações de Amelia com Côrte-Real fossem percebidas, imagine o meu
amigo que não hiria!
--Então elles namoravam-se?
--Pois eu não lhe disse já que sim?
--Não, senhor: disse-me que Amelia passeava repetidas vezes no
cemiterio para vêl-o, mas que não o via muitas vezes. Eu queria saber
como se encontraram... porque... desejo saber como é que a gente póde
sahir d'um encontro d'esses!... Não ha muito que me vi entalado com
um d'esses encontros... Eu tinha o recado na ponta da lingua, e, quando
vi a mocetona, que não era cousa de atarantar um estudante de logica,
pegou-se-me a lingua ao céo da bocca, como diz não sei que poeta...
vox faucibus hoesit... Que lhe disse elle quando a viu?
--Isso é que eu não sei, porque não ouvi. O que sei é que se fallavam
por cartas, e entretiveram assim relações seis mezes. Por fim,
descobre-se o namoro. Côrte-Real fallava da rua para a janella com
Amelia: um tio d'ella é avisado; espera-o no pateo, com a porta fechada,
e, quando elle principia a dizer bellas cousas, o tal bruto abre a porta, e
descarrega-lhe quatro bordoadas, que o pozeram fóra do combate. No
dia seguinte, mandou-lhe a casa a capa, o chapéo, e uma clavina, que
fôra tres vezes batida á queima roupa do tal varredor de feiras.
--E depois?
--D. Amelia, duas horas depois, foi mandada entrar n'uma liteira, e
conduzida a casa d'este padre.
--Para que?
--Para ninguem saber o seu destino, em quanto vinha de Lisboa, onde
ella tinha o conselho de familia, uma ordem para ser recolhida a um
convento.
--E Côrte-Real que fez?
--Curou as feridas da cabeça, e indagou o destino de Amelia. Como o
não soube, cahiu n'uma melancolia profunda, teve accessos de loucura,
e, pelo que o senhor me disse, está hoje no hospital de Rilhafolles.
--E Amelia casou-se?
--Pois no casamento é que está o interessante da historia.
Quinze dias depois da sua vinda para aqui, chegou de Coimbra o irmão
do padre. Parece que sentiu por Amelia o que era muito natural que
sentisse. Amou-a, mas não ousou declarar-se, porque sabia os
precedentes, que a trouxeram a esta casa. Ella, por si, tractava-o com a
fria delicadeza da indifferença, até ao momento, em que recebeu de
uma sua tia a noticia de que viera ordem do conselho de familia para
ser conduzida a Lisboa, e lá recolhida em um convento.
Lida a carta, Amelia offereceu-se como esposa do bacharel. O
imprudente sem mais nem menos, aceitou a offerta. Alcançou do
arcebispo dispensa de banhos e consentimento do tutor: o irmão, sem
consultar a philosophia, a religião, e a consciencia, casou-os. Na tarde
do dia das bodas, chegou a liteira que devia levar a orphã a Lisboa.
Amelia apresentou-se a seu tio com um desdenhoso sorriso, e disse:
«Não tenho duvida nenhuma em hir para Lisboa, e para um convento,
mas é necessario que meu marido vá comigo.»
--Seu marido!--exclamou o tio estupefacto.
--Meu marido... aqui lh'o apresento.
XII.
--Dias depois, esta victima dos seus caprichos, cahiu doente. O medico
capitulou-lhe a enfermidade de tisica no primeiro grau. O marido
arrependeu-se muito cedo. Ella não se arrependeu, porque sabia que
dava um passo que devia matal-a. E, com effeito, está alli... está
morta...
...Ahi vem ella e o padre... Fallemos
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