Scenas Contemporaneas | Page 6

Camilo Castelo Branco

encontral-a com o furão no regaço, a sorrir-se como quem é muito
creança e muito feliz... Sabe o senhor que...
Não sei bem o que o padre disse ao ouvido do estudante. Desconfio,
pela resposta, que o resto do segredo era o receio de que ella
endoudecesse.
Tudo isto, apurava-me o desejo de saber o que era a demencia de
Côrte-Real, e a tisica de Amelia.
X.
Almoçamos.
D. Amelia esteve comnosco alguns minutos, ouvindo não sei que
palavras a meia voz, do meu amigo, inintelligiveis para mim, supposto
que ahi se fallasse duas ou tres vezes n'uma D. Miquelina. Tudo
mysterios!
O padre foi dizer missa. D. Amelia foi com elle. Fiquei com Valladares,
tremendo de frio, ao pé d'uma bacia de brazas. O attencioso levita teve
a delicadeza de nos não convidar a participarmos da sua missa, que
n'aquelle dia, com tal frio, faria hereges espiritos devotos.
--Ahi vai agora a continuação da historia--disse o academico, engulindo
o fumo de quatro cigarros successivos--A familia d'esta senhora é
muito realista, muito fanatica, arde em odio contra os impios, que são
todos, menos os sectarios de D. Miguel, e alguns, senão todos, de D.
Sebastião. A familia de Côrte-Real é ultra-liberal, odeia os realistas
com aquelle odio saturado na emigração, e não admitte honra,
intelligencia, nem merecimento em homem que não fosse capaz de
cortar as orelhas a um miguelista, se elle estiver por isso. Já vê que as
duas familias detestam-se. De parte a parte no momento em que as
relações de Amelia com Côrte-Real fossem percebidas, imagine o meu
amigo que não hiria!
--Então elles namoravam-se?

--Pois eu não lhe disse já que sim?
--Não, senhor: disse-me que Amelia passeava repetidas vezes no
cemiterio para vêl-o, mas que não o via muitas vezes. Eu queria saber
como se encontraram... porque... desejo saber como é que a gente póde
sahir d'um encontro d'esses!... Não ha muito que me vi entalado com
um d'esses encontros... Eu tinha o recado na ponta da lingua, e, quando
vi a mocetona, que não era cousa de atarantar um estudante de logica,
pegou-se-me a lingua ao céo da bocca, como diz não sei que poeta...
vox faucibus hoesit... Que lhe disse elle quando a viu?
--Isso é que eu não sei, porque não ouvi. O que sei é que se fallavam
por cartas, e entretiveram assim relações seis mezes. Por fim,
descobre-se o namoro. Côrte-Real fallava da rua para a janella com
Amelia: um tio d'ella é avisado; espera-o no pateo, com a porta fechada,
e, quando elle principia a dizer bellas cousas, o tal bruto abre a porta, e
descarrega-lhe quatro bordoadas, que o pozeram fóra do combate. No
dia seguinte, mandou-lhe a casa a capa, o chapéo, e uma clavina, que
fôra tres vezes batida á queima roupa do tal varredor de feiras.
--E depois?
--D. Amelia, duas horas depois, foi mandada entrar n'uma liteira, e
conduzida a casa d'este padre.
--Para que?
--Para ninguem saber o seu destino, em quanto vinha de Lisboa, onde
ella tinha o conselho de familia, uma ordem para ser recolhida a um
convento.
--E Côrte-Real que fez?
--Curou as feridas da cabeça, e indagou o destino de Amelia. Como o
não soube, cahiu n'uma melancolia profunda, teve accessos de loucura,
e, pelo que o senhor me disse, está hoje no hospital de Rilhafolles.
--E Amelia casou-se?

--Pois no casamento é que está o interessante da historia.
Quinze dias depois da sua vinda para aqui, chegou de Coimbra o irmão
do padre. Parece que sentiu por Amelia o que era muito natural que
sentisse. Amou-a, mas não ousou declarar-se, porque sabia os
precedentes, que a trouxeram a esta casa. Ella, por si, tractava-o com a
fria delicadeza da indifferença, até ao momento, em que recebeu de
uma sua tia a noticia de que viera ordem do conselho de familia para
ser conduzida a Lisboa, e lá recolhida em um convento.
Lida a carta, Amelia offereceu-se como esposa do bacharel. O
imprudente sem mais nem menos, aceitou a offerta. Alcançou do
arcebispo dispensa de banhos e consentimento do tutor: o irmão, sem
consultar a philosophia, a religião, e a consciencia, casou-os. Na tarde
do dia das bodas, chegou a liteira que devia levar a orphã a Lisboa.
Amelia apresentou-se a seu tio com um desdenhoso sorriso, e disse:
«Não tenho duvida nenhuma em hir para Lisboa, e para um convento,
mas é necessario que meu marido vá comigo.»
--Seu marido!--exclamou o tio estupefacto.
--Meu marido... aqui lh'o apresento.
XII.
--Dias depois, esta victima dos seus caprichos, cahiu doente. O medico
capitulou-lhe a enfermidade de tisica no primeiro grau. O marido
arrependeu-se muito cedo. Ella não se arrependeu, porque sabia que
dava um passo que devia matal-a. E, com effeito, está alli... está
morta...
...Ahi vem ella e o padre... Fallemos
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 67
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.