deliberou que a orphã viesse para a provincia, onde tinha tios, e
o seu patrimonio em quintas.
Quando appareceu em * * *, os rapazes fizeram-lhe montaria, e
disputaram a primazia no namoro. D. Amelia não aceitava, nem repellia
a côrte de nenhum. Tinha o mesmo riso para todos, e fallava a todos
com a mesma delicadeza.
Havia alli um rapaz que não frequentava a sociedade de Amelia, porque
não frequentava sociedade nenhuma. Fôra educado em Genova, viera
de lá aos quinze annos, vivera no Porto até aos vinte e cinco, e quando
recolheu á provincia, d'onde sahira de tres annos, com a sua familia que
emigrára em 1828, ninguem o conhecia, e elle mesmo não queria
conhecer ninguem.
Chamavam-lhe celebre, exquisito, excentrico, orgulhoso, impostor, e
não sei que muitas outras lisonjas do charco de certos espiritos, que não
podem sahir da pequena esphera de lama, que a natureza lhes deu por
homenagem.
D. Amelia viu este rapaz n'um cemiterio: leu um epitaphio que elle
mandára abrir na sepultura de seu pai que o deixára em Genova no
collegio, e viera morrer em 1836 á patria: comprimentou-o de
passagem, respondendo a um distincto cortejo do melancolico poeta; e
parece que, desde esse encontro, Amelia transfigurou-se para todos os
homens, deu que pensar á sua familia, queria todos os dias visitar o
cemiterio, e retirava quasi sempre mais triste, porque muito raras vezes
encontrou alli o invisivel extravagante da opinião publica.
--Como se chamava elle? Eu conheço alguns rapazes de * * * que
foram meus condiscipulos em logica.
--Não é nenhum dos seus condiscipulos. Já lhe disse que este sujeito
veio do Porto para a provincia, com vinte e tantos annos pelo menos. O
seu appellido é Côrte-Real, conhece?
--Nada, não conheço; mas ouço fallar todos os dias n'esse rapaz.
--Que ouve dizer?
--Que está em Lisboa, doudo, no hospital...
--O senhor afiança-me isso? Ha que tempo endoudeceu?
--Ha dous ou tres mezes...
--Quem lh'o disse?
--Um medico, meu parente, que o mandou conduzir para a enfermaria
dos doudos.
O academico fez-me signal de silencio, e mandou-me ouvir.
--Não ouve?--disse elle.
--Ouço... é alguem que soluça...
--É ella...
--D. Amelia?
--Sim... Ouviu a nossa conversa... Tem ouvidos de tisica...
--É admiravel!... Pois o quarto d'ella não é longe d'este?
--Passam-se tres quartos, mas os repartimentos são de tabique, e eu não
me lembrei de tal... Calemo-nos...
--E a historia?... Falle mais baixo, que ella não ouvirá mais nada...
--Agora, é impossivel... Aquelles soluços transtornaram-me a cabeça...
Deite-se, e ámanhã fallaremos antes de nos despedirmos...
IX.
Á cabeceira do meu leito, estava um volume das Viagens de Cyro, e o
quinto volume d'uma Miscellanea curiosa e proveitosa, onde encontrei
uma longa poesia a D. Ignez de Castro, que me fez dormir até ás 8
horas da manhã.
O meu companheiro, quando abri os olhos, estava sentado na cama, e
escrevendo nas paginas d'uma carteira.
--O senhor está a fazer versos?--perguntei eu.
--Adevinhou.
--Faz favor de recitar, se não é segredo!
--Recito: olhe lá se entende:
Eras um anjo? Se o eras Que torvo facho do inferno Te queimou as
azas? Diz: Porque, tão cedo, infeliz Cahes no abysmo eterno!...
ETERNO!
--Entendeu?
--Não, senhor.
--Veja se entende agora:
Eras pura, quando lagrimas Tu me déste, e me pediste... Tu choraste
aqui, choravas... Mas porque? prophetisavas Este abysmo em que
cahiste?
--Entendeu?
--Nada... Ora diga-me os versos tem alguma cousa com a historia que
ficou suspensa?
--Não, senhor; pertencem a outra, que nasceu aqui n'esta casa, e que é
toda minha...
--Esta casa parece-me uma casa de novella... Estou a vêr se aqui arranjo
tambem alguma historia para contar a minha tia, que está resando o
quadragesimo responso a Santo Antonio por minha causa, se é que já
me não resou por alma... Então o senhor não conta ao menos a primeira
historia completa?
--Hei-de contar.
--Quando? Eu vou-me embora logo.
--Não vai. Já aqui esteve o padre, e disse que não sahiriamos d'aqui
hoje, porque augmentou de noite a neve.
--Deixal-a; mas a minha familia, se eu não appareço, nem dou parte de
mim, julga-me morto, e é capaz de me fazer officio de corpo ausente.
--Não se assuste, que o padre hontem á noite mesmo fez partir para a
sua aldêa um criado com a certeza de que o senhor ficava vivo, e mais
o seu furão.
--A proposito, sabe se já dariam de almoçar ao meu furão.
--É natural que sim... Ahi vem o snr. abbade; perguntemos-lhe... Snr.
padre Joaquim, pergunta alli o nosso amigo se o furão ja almoçou.
--Comeu quatro ovos, e está agora brincando com minha cunhada, que
é muito amiga de bichos.
--E como passou ella?--perguntou Valladares.
--Penso que melhor... Ergueu-se muito cedo: a creada disse que a vira
chorar toda a noite; mas agora fui, com grande espanto meu,
Continue reading on your phone by scaning this QR Code
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the
Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.