mas a Providencia encaminhou-me ao
paraizo, depois de me ter mostrado o inferno.
--Ora ahi tem uma resposta d'um moço, que seria pena comerem-no os
lobos!...--disse o padre, desafiando um gracioso sorriso de Amelia.
--Ha-de dizer ao seu parente medico que me salve da sepultura assim
como nós esta noite o salvaremos de ser victima dos lobos--disse-me
ella, apertando affectuosamente a mão de Valladares, em despedida,
porque a tosse exasperava-se cada vez mais.
Esta rapida apparição impressionou-me muito. Queria fazer mil
perguntas; mas eu não tinha a quem. O padre e o estudante fallaram em
assumptos, que me não interessavam nada. O que eu queria era a vida,
a historia, os soffrimentos, a poesia d'aquella mulher. Eu tinha lido,
dias antes, não sei que romance, onde vira uma mulher assim...
Appareceu um taboleiro com a cêa. O abbade fez o prato de D. Amelia.
Era uma aza de gallinha, que elle mesmo lhe serviu.
Valladares tambem comeu do pucaro da doente. Eu, com o abbade,
entramos corajosamente n'um coelho guisado, cuja retaguarda cortamos
com um excellente caldo verde, e lourejantes castanhas assadas com
manteiga.
No fim, demos graças a Deus.
O padre, segundo o seu costume, foi sentar-se á cabeceira de sua
cunhada. Eu e Valladares entramos n'um quarto commum.
VII.
O academico tinha uma physionomia franca e insinuante. Conversava
comigo sem desdenhosa superioridade. Familiarisamo-nos depressa,
como dous futuros companheiros de casa em Coimbra.
Eu fui um grande fallador, n'aquella idade, em que pensava menos. O
meu recente amigo sympathisou com a minha garrula eloquencia, e
dava signaes de desenfado, quando naturalmente devêra querer dormir,
depois de uma fatigante jornada, em dia de neve.
Eu não era rapaz que, por delicadeza, calasse a minha curiosidade a
respeito de D. Amelia.
--O senhor faz-me o favor de me dizer uma cousa?--disse eu.
--Que é? quantas horas são?... são 10... quer dormir?
--Não, senhor: queria saber quem é esta snr.^a D. Amelia?
--É cunhada do padre, e casada com um sujeito, delegado em * * *.
--Isso já eu sabia... pouco mais ou menos.
--Então sabe tanto como eu...
--Mas é d'aqui d'esta aldêa esta senhora? Creio que ouvi dizer que era
de Lisboa.
--É verdade... nasceu em Lisboa...
--E como veio parar aqui n'este matagal? Naturalmente perdeu-se,
como eu, na serra, por causa da neve, e veio cá bater, e cá ficou! Pois
eu dou-lhe a minha palavra de honra, que apenas vir luzir o buraco,
retiro-me sem mais ceremonias d'este delicioso covil de cabras.
O meu amigo ria-se. Estava disposto a achar-me graça, e o leitor póde
tambem rir-se, se lhe aprouver.
E acrescentou ao sorriso:
--Parece-lhe impossivel que a tal senhora viesse de Lisboa para aqui
sem ser impellida por um acaso?
--De certo... Já não admira que ella tenha tosse de tisica... O que me
espanta é ella viver, se cá está desde hontem!... Quando veio ella?
--Ha dous annos.
--Então é eterna... ou santa. Hei-de dizer que encontrei esta martyr a
uma minha tia, que é capaz de jurar que a viu fazer milagres...
--O menino é sarcastico! Se o não visse tão inclinado a rir-se de cousas
serias, contava-lhe uma historia triste...
--E eu gosto muito de historias tristes... Verá que me não rio, quando
me dizem alguma cousa que me toque o sentimento. A minha familia
chama-me poeta; os visinhos chamam-me tolo; não sei bem o que sou;
mas o que não sou é insensivel... Vê... já não tenho vontade de
gracejar... Conte-me agora a historia, que eu prometto contar-lhe outra
que me fez chorar, porque é uma passagem tão infeliz, que, se eu
fizesse novellas, escrevia uma.
--Talvez as escreva no futuro...
--Eu?... Deixe-se d'isso... O meu mestre de logica diz que eu sou um
alarve, e o de rhetoria já me mandou ser aprendiz de alfaiate... Não
tenho habilidade nenhuma. O meu gosto é lêr os sonetos do abbade de
Jazente, e as quintilhas do Nicolau Tolentino. Não sei mais nada, nem
quero saber... Vamos á historia, sim?
--Então aproxime-se de mim, que eu quero fallar baixo. Mas, antes de
mais nada, promette não contar a ninguem o que vou dizer-lhe?
--Pois é segredo!
--É.
--Prometto...
--Pois ahi vai.
VIII.
--Esta senhora viveu em Lisboa até aos dezeseis annos. Hoje o mais
que póde ter são vinte e dous.
--Só?! Eu calculava trinta e tantos bons, como diz minha tia, quando
quer fazer todas as pessoas mais velhas que ella.
--Pois deixemos lá sua tia, que deve ser, pouco mais ou menos, como
todas as tias... Vamos com a nossa historia, e depressa, senão adormeço,
e o meu curioso amigo perde a occasião de saber quem é a snr.^a D.
Amelia...
--Isso de modo nenhum--atalhei eu com sobresalto--Prometto não
interromper a historia.
--Pois bem. O pai d'esta senhora morreu em Lisboa, e o conselho de
familia
Continue reading on your phone by scaning this QR Code
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the
Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.