Scenas Contemporaneas | Page 4

Camilo Castelo Branco
mas a Providencia encaminhou-me ao
paraizo, depois de me ter mostrado o inferno.
--Ora ahi tem uma resposta d'um moço, que seria pena comerem-no os
lobos!...--disse o padre, desafiando um gracioso sorriso de Amelia.
--Ha-de dizer ao seu parente medico que me salve da sepultura assim
como nós esta noite o salvaremos de ser victima dos lobos--disse-me
ella, apertando affectuosamente a mão de Valladares, em despedida,
porque a tosse exasperava-se cada vez mais.
Esta rapida apparição impressionou-me muito. Queria fazer mil
perguntas; mas eu não tinha a quem. O padre e o estudante fallaram em
assumptos, que me não interessavam nada. O que eu queria era a vida,
a historia, os soffrimentos, a poesia d'aquella mulher. Eu tinha lido,
dias antes, não sei que romance, onde vira uma mulher assim...
Appareceu um taboleiro com a cêa. O abbade fez o prato de D. Amelia.
Era uma aza de gallinha, que elle mesmo lhe serviu.
Valladares tambem comeu do pucaro da doente. Eu, com o abbade,
entramos corajosamente n'um coelho guisado, cuja retaguarda cortamos
com um excellente caldo verde, e lourejantes castanhas assadas com
manteiga.
No fim, demos graças a Deus.
O padre, segundo o seu costume, foi sentar-se á cabeceira de sua
cunhada. Eu e Valladares entramos n'um quarto commum.
VII.
O academico tinha uma physionomia franca e insinuante. Conversava
comigo sem desdenhosa superioridade. Familiarisamo-nos depressa,
como dous futuros companheiros de casa em Coimbra.
Eu fui um grande fallador, n'aquella idade, em que pensava menos. O
meu recente amigo sympathisou com a minha garrula eloquencia, e

dava signaes de desenfado, quando naturalmente devêra querer dormir,
depois de uma fatigante jornada, em dia de neve.
Eu não era rapaz que, por delicadeza, calasse a minha curiosidade a
respeito de D. Amelia.
--O senhor faz-me o favor de me dizer uma cousa?--disse eu.
--Que é? quantas horas são?... são 10... quer dormir?
--Não, senhor: queria saber quem é esta snr.^a D. Amelia?
--É cunhada do padre, e casada com um sujeito, delegado em * * *.
--Isso já eu sabia... pouco mais ou menos.
--Então sabe tanto como eu...
--Mas é d'aqui d'esta aldêa esta senhora? Creio que ouvi dizer que era
de Lisboa.
--É verdade... nasceu em Lisboa...
--E como veio parar aqui n'este matagal? Naturalmente perdeu-se,
como eu, na serra, por causa da neve, e veio cá bater, e cá ficou! Pois
eu dou-lhe a minha palavra de honra, que apenas vir luzir o buraco,
retiro-me sem mais ceremonias d'este delicioso covil de cabras.
O meu amigo ria-se. Estava disposto a achar-me graça, e o leitor póde
tambem rir-se, se lhe aprouver.
E acrescentou ao sorriso:
--Parece-lhe impossivel que a tal senhora viesse de Lisboa para aqui
sem ser impellida por um acaso?
--De certo... Já não admira que ella tenha tosse de tisica... O que me
espanta é ella viver, se cá está desde hontem!... Quando veio ella?

--Ha dous annos.
--Então é eterna... ou santa. Hei-de dizer que encontrei esta martyr a
uma minha tia, que é capaz de jurar que a viu fazer milagres...
--O menino é sarcastico! Se o não visse tão inclinado a rir-se de cousas
serias, contava-lhe uma historia triste...
--E eu gosto muito de historias tristes... Verá que me não rio, quando
me dizem alguma cousa que me toque o sentimento. A minha familia
chama-me poeta; os visinhos chamam-me tolo; não sei bem o que sou;
mas o que não sou é insensivel... Vê... já não tenho vontade de
gracejar... Conte-me agora a historia, que eu prometto contar-lhe outra
que me fez chorar, porque é uma passagem tão infeliz, que, se eu
fizesse novellas, escrevia uma.
--Talvez as escreva no futuro...
--Eu?... Deixe-se d'isso... O meu mestre de logica diz que eu sou um
alarve, e o de rhetoria já me mandou ser aprendiz de alfaiate... Não
tenho habilidade nenhuma. O meu gosto é lêr os sonetos do abbade de
Jazente, e as quintilhas do Nicolau Tolentino. Não sei mais nada, nem
quero saber... Vamos á historia, sim?
--Então aproxime-se de mim, que eu quero fallar baixo. Mas, antes de
mais nada, promette não contar a ninguem o que vou dizer-lhe?
--Pois é segredo!
--É.
--Prometto...
--Pois ahi vai.
VIII.
--Esta senhora viveu em Lisboa até aos dezeseis annos. Hoje o mais
que póde ter são vinte e dous.

--Só?! Eu calculava trinta e tantos bons, como diz minha tia, quando
quer fazer todas as pessoas mais velhas que ella.
--Pois deixemos lá sua tia, que deve ser, pouco mais ou menos, como
todas as tias... Vamos com a nossa historia, e depressa, senão adormeço,
e o meu curioso amigo perde a occasião de saber quem é a snr.^a D.
Amelia...
--Isso de modo nenhum--atalhei eu com sobresalto--Prometto não
interromper a historia.
--Pois bem. O pai d'esta senhora morreu em Lisboa, e o conselho de
familia
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