vos digo mais nada a este
respeito, porque me não entenderieis. Sois excellentes pessoas para
devorar um romance em dez volumes; mas não lerieis, sem abrir tres
vezes a bocca, uma pagina de sentimentos embalsamados do aroma do
céo, que o poeta não deve nunca profanar, misturando-os a frioleiras
d'uma historia, ao alcance de todas as capacidades.
Eu creio que entre vós ha entendimentos muito finos, paladares muito
apurados no sabor do bello, corações muito brandos para emoções
suaves. Creio que sim; mas o melhor é fazer de conta que os não ha.
V.
Minutos depois, achava-me n'uma povoação, onde nunca estivera.
Encontrei uma velha que castigava um porco, rebelde á invocação de
sua ama, com uma roca.
Perguntei-lhe que povo era aquelle.
--Alpedrinha--disse ella.
Ora, Alpedrinha distava duas leguas e meia de minha casa. Era
necessario pernoitar alli. Perguntei á dita velha onde morava o parocho.
Mostrou-me a casa. Pedi gasalhado ao reverendo, que n'esse momento
voltava da igreja. Disse-me que subisse. Quiz saber quem eu era, e
tratou-me delicadamente, quando lhe citei um medico, pessoa de minha
familia.
O snr. padre Joaquim era um padre admiravel. Tinha maneiras da côrte.
Vestia com muita limpeza. Fallava com prodigiosa correcção, e
offerecia aos seus hospedes aguardente e biscoutos, tudo do melhor, e
servido em bons crystaes e polida salva de prata.
Momentos depois que eu chegára, apeou á porta do meu sympathico
sacerdote um cavalleiro, ainda moço, muito pallido e magro, com
chapéo hespanhol, faxa vermelha, e botas d'agua.
Era um estudante de Coimbra, que voltava doente para sua casa, e
costumava pernoitar em Alpedrinha, com aquella familia.
A primeira pergunta do academico foi esta:
--Como está a snr.^a D. Amelia?
--O mesmo...--respondeu padre Joaquim.
--E seu mano? Tem vindo a casa?
--Não senhor: desde que foi delegado para * * *, ha tres mezes, não
voltou....
Eu estava ancioso por conhecer a snr.^a D. Amelia, porque até ao
momento em que o estudante chegou, suppunha eu que toda a familia
do parocho se limitaria a alguma ama, e alguns pequenitos, que, de
ordinario, são afilhados do padre. Depois das perguntas do meu illustre
companheiro de hospedagem, fiquei sabendo que n'aquella casa existia
uma snr.^a D. Amelia, e um senhor delegado de * * *.
Padre Joaquim contou ao academico as minhas aventuras de caçador;
disse-lhe que me tinha achado muito fino (referia-se naturalmente á
magresa), e fez a apologia dos meus olhos, que, naturalmente,
revelavam uma extraordinaria esperteza, espiritualisados pelo espirito
de vinho, que o sacerdote me injectou nas veias marasmadas pelo frio.
Conversei com o academico. Perguntei-lhe muitas cousas de Coimbra:
quantos canellões soffria um calouro; o calculo aproximado dos puxões
de orelhas; a solemnidade indecente de certo vaso na cabeça.... &c. &c.
O academico respondia-me com muito agrado, e offerecia-se para meu
protector em Coimbra, no anno seguinte, que devia ser o da minha
partida.
VI.
--Snr. Valladares--disse o padre ao estudante--minha cunhada
ergueu-se da cama para vir comprimental-o...
--É uma grande consideração, que eu lhe não mereço; mas a delicadeza
da snr.^a D. Amelia é sempre um severo preceito que ella se impõe.
Fallou bem.
N'isto, entrou uma senhora, com um ar de tanta nobreza, que me
pareceu uma cousa nova. Eu não conhecia assim nenhuma. Era alta,
muito magra no rosto, mas muito bella nos olhos, nos labios, nos
cabellos, em tudo se via tanta formosura, tanto donaire, um senhoril tão
estreme do vulgo, que eu, creança e poeta, senti-me tão acanhado como
o mais boçal dos pastores de cabras d'aquella freguezia.
--Como passou, snr. Valladares?--perguntou ella com voz tremula,
tossindo a cada palavra, e aconchegando da face a golla de veludo da
sua capa.
--Sempre doente, minha senhora... Por não poder mais, recolho-me a
casa...
--Eu bem lhe disse que não fosse... v. s.^a teimou, agora já sabe que os
conselhos d'uma mulher não são sempre pieguices...
--E os de v. exc.^a nunca poderão sêl-o... E a snr.^a D. Amelia como
está?
--D'este modo que vê... Tossindo sempre, sempre mal, sem descanço
d'este lado, que me parece que já não vive, se não para matar o resto de
vida que tenho...
D. Amelia indicava o coração.
--Porque não dá um passeio até Lisboa?--tornou o academico.
--Isso lhe tenho eu dito todos os dias--atalhou o padre.
--De que me serve Lisboa?
--São ares patrios, minha senhora. Talvez o contacto do coração com as
suas amigas de collegio...
--Eu já não tenho coração para contacto com amigas nem inimigas, snr.
Valladares...
--O que v. exc.^a tem é uma ardentissima imaginação, alma de poeta,
que só tem a sensibilidade do que é triste, e não sabe tirar recursos da
esperança...
--Esperança!...--murmurou ella com um triste sorriso, e voltando-se
para mim, perguntou-me:
--Já sei que este senhor esteve em risco de passar uma noite divertida
com os lobos...
--É verdade, minha senhora;
Continue reading on your phone by scaning this QR Code
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the
Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.