Legenda do Santo
«Era uma vez um velho, mui velhinho,
Vinde, meus filhos! vinde
ouvir contar!
Seguia, ao por-do-sol, por um caminho,
Dois saccos
de Amargura a carregar.
O pobre velho, todo derreadinho,
Já não podia mais, queria arreiar;
Mas passa um cavalleiro: «Olá, santinho!
Eu deito-lhe uma mão para
o ajudar...»
E o fidalgo desceu do seu cavallo:
Tomou-lhe os saccos que iam a
matal-o
E aos hombros carregou com o maior!
E, hoje, o velhinho anda a construir, coitado!
Que linda ermida, n'esse
chão sagrado,
Onde lhe appareceu Nosso Senhor!»
Pariz, 1891.
3
Prologo
Em hora de afflicçãô, molhei a penna
Na chaga aberta d'esse corpo
amado,
Mas n'uma chaga a suppurar gangrena,
Cheia de puz, de
sangue já coalhado!
E depois, com a mão firme e serena,
Compuz este missal d'um
torturado:
Talvez choreis, talvez vos faça pena...
Chorae! que
immenso tenho eu já chorado.
Abri-o! Orae com devoção sincera!
E, à leitura final d'uma oração,
Vereis cair no solo uma chymera...
Moços do meu paiz! vereis então
O que é esta Vida, o que é que vos
espera...
Toda uma Sexta-feira de Paixão!
Coimbra, 1889.
4
Natal d'um Poeta
Em certo reino, á esquina do planeta,
Onde nasceram meus Avós,
meus Paes,
Ha quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fôra
não a ver jamais.
Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os
ideaes,
A falsa-fé, n'uma traição abjecta,
Como os bandidos nas
estradas reaes!
E, embora eu seja descendente, um ramo
D'essa arvore de Heroes que,
entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo ideal:
Nada me importas, Paiz! seja meu amo
O Carlos ou o Zé da Th'reza...
Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!
Coimbra, 1889.
5
Ai de Mim!
Venho, torna-me velho esta lembrança!
D'um enterro d'anjinho, nobre
e puro:
Infancia, era este o nome da criança
Que, hoje, dorme entre
os bichos, lá no escuro...
Trez anjos, a Chymera, o Amor, a Esperança
Acompanharam-n'o ao
jazigo obscuro,
E recebeu, segundo a velha usança,
A chave do
caixão o meu Futuro.
Hoje, ambulante e abandonada Ermida,
Leva-me o fado, á bruta, aos
empurrões,
Vá para a frente! Marcha! Á Vida! Á Vida!
Que hei-de fazer, Senhor! o qu'é que espera
Um bacharel formado em
illuzões
Pela Universidade da Chymera?
Boa Nova, 1887.
6
Conde
Na praia lá da Boa Nova, um dia,
Edifiquei (foi esse um grande mal)
Torreão de gloria, o que é a phantasia,
Todo de lapis-lazzuli e
coral!
N'aquellas redondezas, não havia
Quem se gabasse d'um dominio
egual:
Oh o Torreão de gloria! parecia
O territorio d'um
Senhor-feudal!
Um dia, não sei quando, nem sei d'onde;
Um vento secco de tortura e
spleen
Deitou por terra, ao pó que tudo esconde,
O meu condado, o meu condado, sim!
Porque eu já foi um poderoso
Conde,
N'aquella idade em que se é conde assim...
Porto, 1887.
7
Ó Virgens!
Ó virgens que passaes, ao sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente
Que me transporte ao meu
perdido lar...
Cantae-me, n'essa voz omnipotente,
O sol que tomba, aureolando o
mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a graça, a formozura, o
luar!
Cantae! cantae as limpidas cantigas!
Das ruinas do meu lar
desatterrae
Todas aquellas illuzões antigas
Que eu vi morrer n'um sonho, como um ai...
Ó suaves e frescas
raparigas;
Adormecei-me n'essa voz... Cantae!
Porto, 1886.
8
Á Luz de Lua!
Iamos sós pela floresta amiga,
Onde em perfumes o luar se evola,
Olhando os céus, modesta rapariga!
Como as crianças ao sair da
escola.
Em teus olhos dormentes de fadiga,
Meio cerrados como o olhar da
rola,
Eu ia lendo essa ballada antiga
D'uns noivos mortos ao cingir
da estola...
A Lua-a-Branca, que é tua avozinha,
Cobria com os seus os teus
cabellos
E dava-te um aspeto de velhinha!
Que linda eras, o luar que o diga!
E eu compondo estes versos, tu a
lel-os,
E ambos scismando na floresta amiga...
Porto, 1884.
9
Desobriga
Os meus peccados, Anjo! os meus peccados!
Contar-t'os? Para que,
se não têm fim...
Sou santo ao pé dos outros desgraçados,
Mas tu és
mais que santa ao pé de mim!
A ti accendo cyrios perfumados,
Faço novenas, queimo-te alecrim,
Quando soffro, me vejo com cuidados...
Nas tuas rezas, lembra-te de
mim!
Que eu seja puro d'alma e pensamento!
E que, em dia do grande
julgamento,
Minhas culpas não sejam de maior:
Pois tenho, que o céu tudo aponta e marca,
Um processo a correr
n'essa comarca,
Cujo delegado é Nosso Senhor...
Hamburgo, 1891.
10
Que Aborrecido!
Meus dias de rapaz, de adolescente,
Abrem a bocca a bocejar
sombrios:
Deslizam vagarozos, como os rios,
Succedem-se uns aos
outros, egualmente.
Nunca desperto de manhã, contente.
Pallido sempre com os labios
frios,
Oro, desfiando os meus rozarios pios...
Fôra melhor dormir,
eternamente!
Mas não ter eu aspirações vivazes,
E não ter, como têm os mais
rapazes,
Olhos boiando em sol, labio vermelho!
Quero viver, eu sinto-o, mas não posso:
E não sei, sendo assim,
emquanto moço,
O que serei, então, depois de velho...
Bellos-Ares, 1889.
11
Poveiro
Poveirinhos! meus velhos pescadores!
Na Agoa quizera com vocês
morar:
Trazer o lindo gorro de trez cores,
Mestre da lancha
Deixem-nos passar!
Far-me-ia outro, que os vossos interiores
De ha tantos tempos, devem
já estar
Calafetados pelo breu das dores,
Como esses pongos em
que andaes no mar!
Ó meu Pae,
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