Ruy o escudeiro: Conto | Page 4

Luís da Silva Mousinho de Albuquerque
Tal era formado
No vulto, e nas cores,
Que era a Marte asado,
Era asado a amores.
Qual brilha entre as flores
O cravo fragrante,
Tal elle prestante
Entre os mais brilhára,
Ou tal se elevára
Entre os companheiros,
Como nos outeiros
O olmo alteroso
Sobre o bosque ergue o cume alto, e frondoso.
No patrio tecto, desde o berço vira
Do nobre pai o escudo pendurado,

A cota, que inimigo ferro abrira,
Inda tinta do sangue não vingado.

Mil vezes entre pranto á mãi ouvira
Contar paterna gloria e triste
fado,
Mil co'a infantina mão tocado havia
A herdada lança, que ha
brandir um dia.
Entre memorias taes do patrio dano
Do filho de Ruy crescera a idade;

Volvido haviam já anno apoz anno
Conduzindo o vigor da
mocidade,
Quando a mãi, que respeita como arcano
Do extincto
Esposo a ultima vontade,
No dia em que seu lucto revivia
Ao filho

bem amado assim dizia.
«Martyr da fé Christãa teu Pai na guerra
«Pela Cruz deu a vida
peleijando;
«Fatal golpe o prostrou na propria terra,
«Que para
Christo andava conquistando.
«Ah! se lá donde o summo bem se
encerra
«Elle, oh filho, nos vê, ver-me-ha chorando,
«Dar-te o
preceito, que houve do Consorte
«Quando a alma entregou nas mãos
da morte.
«Alli fica, me disse, aquella lança,
«Que só de infiel sangue foi
manchada,
«Alli deixo esse escudo por herança,
«Esse elmo, essa
cota, e essa espada:
«Se o summo Deus tiver de nós lembrança,
«E
que um filho haja em ti, oh bem amada,
«Meu nome lhe darás, e essa
armadura
«Sob a qual encontrei a morte dura.
«Dar-lhe-has esta Cruz. Isto dizendo
«Do peito a separou por vez
primeira,
«E o braço, já sem força, a custo erguendo,
«Aos labios a
levou por derradeira.
«Dir-lhe-has, que se a paz acho morrendo
«A
esta insignia a devo verdadeira,
«Devo-a de Christo á fé, que a vida
guia,
«Que ensina a fallecer sem agonia.
«Dize-lhe que a conserve ao peito unida,
«Que ao lado seu cinja a
paterna espada,
«Aquella p'ra o guiar á eterna vida,
«Esta p'ra ser a
seu Senhor votada;
«Que indomito na pugna asp'ra e renhida,
«A
fraqueza respeite desarmada;
«Que preze a honra; fuja da cobiça,

«E da moleza vil, que o vicio atiça.
«Assim fallou teu Pai.... e a penetrante
«Ferida em rouxo sangue se
esvaia.
«Sumiu-se a voz no peito palpitante,
«Aos olhos se apagou
a luz do dia:
«Soou da minha dita ultimo instante,
«Já d'esta alma a
ametade não vivia;
«Mas dentro de meu seio palpitava
«Penhor,
que a ficar viva me obrigava.
«Vivi, a força achei, que me vigora
«No maternal amor, oh filho
amado,

«Cáro penhor de um laço, doce outr'ora;
«Mas roto, quando

apenas estreitado!
«A ti mancebo, a ti pertence agora
«Restituir-me
aquelle que hei chorado,
«Se, como espero, em ti vir renascida
«A
virtude d'essa alma ao ceo subida.
«Da tua infancia os dias acabaram,
«Já teus membros tem força e tem
destreza,
«Aquelles, que o esposo me roubaram,
«Saibam que não
fiquei só, sem defeza.
«Sangue vil minhas veias não herdaram,

«Nem coração sugeito a tal fraqueza,
«Que ao filho de Ruy estorve a
gloria
«De ter por Deus, e pelos seus victoria.»
De Ruy a viuva, assim fallando,
Do muro antigo as armas desprendia,

E os humidos olhos enchugando,
O filho de Ruy d'ellas cobria.
O
mancebo, de nobre ardor córando.
Com respeito a armadura recebia,

Que já na dura guerra exp'rimentada,
Fôra do pai com o sangue
consagrada.
Um captivo entretanto apparelhava
O bruto ardente, que se apraz na
guerra,
Que impaciente o freio mastigava,
Co'a vigorosa mão
cavando a terra;
Já armado sobre elle cavalgava
Quem do ninho
paterno se desterra,
A procurar do mundo as aventuras,
Gratas a
poucos, para tantos duras.
Da triste mãi os olhos macerados
Por largo espaço a marcha lhe
seguiram;
Ao perde-lo porem entre os silvados
De uma nevoa de
pranto se cobriram.
Seus animos, do filho sustentados,
Ao
arrancar-se d'elle sucumbiram.
Sentiu a triste, a dôr, magoa,
anciedade,
Que só conhece a maternal saudade.
Segue no emtanto o moço a varia estrada
Que o Mondego do Douro
distanceia,
Na terra, dos Beroens Beira chamada,
Onde o Vouga
entre as serras serpenteia,
Do Bussaco transpõe serra elevada,
E
bem depressa a vista lhe recreia
Valle ameno, co'as flores e a
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 43
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.