Ruy o escudeiro: Conto | Page 3

Luís da Silva Mousinho de Albuquerque
Sopra da tarde

Grata frescura
Reanimando
Murcha verdura.
Vem o novilho,
Já libertado
Do duro jugo,
Pascer no prado.
Sobem dos campos
Os segadores.
Ledos cantando
Ternos amores.
Gentil mancebo,
Que amor encanta,
Ao som das córdas
As penas canta,
Em quanto em giros
Linda pastora
Co'a dança leve
Mais o namora,
Hora sem par, em que o cadente dia
Traz repouso, ternura, e alegria!
Pedro Affonso no emtanto, em cujo peito
A pár da intrepidez móra a
piedade,
Guerreiro sem igual, Christão perfeito,
Vai demandando a
erma soledade
Do provecto Ermitão, asilo estreito
Onde fugindo as
pompas, e a vaidade,
A Deus e á penitencia consagrára
O
venerando velho a vida cára.
N'uma colina, apenas exalçada
Sobre a vasta planicie calorosa,

Uma exigua Capella era elevada
N'aquella idade barbara, e piedosa:

Do velho Ermita a cellula acanhada
Jazia ao lado, uma sobreira
annosa,
Co'a larga rama o tecto protegia,
E do profano olhar a
defendia.
Ante a porta do sacro monumento
Com toscos páus estava retratado

O sacrosanto lenho do tormento,
Em que o Filho de Deus fôra
pregado:
Dentro sculptado via-se o momento
Em que o Corpo sem
vida, reclinado
Da Mãi nos braços, vai, qual creatura.
O Creador
baixar á sepultura.

Alli da noute na primeira vela
P'ra o Rei, do sacro livro possuido,
A
campana soou, que o tempo assella
Do celeste Emissario promettido,

P'ra que em luz, que a do Sol mais clara e bella
Fosse Christo por
elle percebido,
Promettendo-lhe a coroa, e a victoria
Da sua estirpe,
e do seu povo a gloria.
Naquelle instante o velho venerando,
De giolhos aos pés da Cruz
alçada,
Estava o fim do dia consagrando,
Como do dia consagrára a
entrada.
Raros alvos cabellos fluctuando
Se viam sobre a frente
despojada;
E a barba, que lhe o vento sacudia
Em ondas, sobre o
peito lhe descia.
Na piedosa oração todo engolfado
Estava o santo velho por tal sorte,

Que nem sequer sentiu chegar-lhe ao lado,
Do Escudeiro seguido,
o Varão forte.
Pedro Affonso parou, seu peito, armado
De audacia
contra os perigos, contra a morte,
Toca a vista do Ermita por tal geito,

Que não sabe se é medo, se respeito.
Mas o moço Escudeiro, que o seguia
Bem diversa impressão
experimentava,
Do Ermita a quietação, quasi a apathia
Da sua alma
c'o estado contrastava;
Em seu peito um volcão latente ardia,
Dos
desejos no pelago nadava,
Estava n'essa idade, em que o repouso
É
não só mal; mas mal o mais penoso.
Ruy era o seu nome. Á luz viera
Sob o tecto paterno junto ao Douro;

Seu Pai, no nome igual, a vida dera
Com Henrique pugnando
contra o mouro.
Jámais paterno affago conhecera,
Que a triste
viuvez, envolta em chôro
Ruy, unico bem que lhe restára,
No berço
filho posthumo embalára.
Unica flôr, que lhe esmaltasse a vida,
A mãi no tenro filho cultivava,

Nelle a imagem do pai, reproduzida,
Embellezada ainda, idolatrava.

No Joven desde a infancia alma atrevida

Namorada da gloria se
mostrava,
Com coração ardente, e generoso,
E a um tempo amante,

meigo, e carinhoso.
Indole a tudo prompta, a tudo ousada
No porte do mancho transluzia:

Na estatura esbelta, e levantada
Co'a ligeireza a robustez se unia:

Sobre a frente morena, e dilatada
A negra liza comma lhe descia,

Nos olhos vivos, e de côr escura
Temperava o fogo bellico a ternura.
Não era lindo, não, que expressão tanta
Destroe a symetria da lindeza;

Porem mais do que o lindo arrastra, encanta,
Interessa, move, e a
attenção tem presa.
Sem ter severo olhar, que o riso espanta,
Séria a
sua expressão, toca em tristeza,
Trasborda n'ella uma alma forte e
ardente,
Que tudo póde ser, salvo indiff'rente.
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