Pátria | Page 8

Junqueiro Guerra
vender El-rei? já calculaste?...?E um Veneno, que é t?o pequeno e que é t?o mau!?Fraldiqueiro e feroz, pulgasita e lacrau!?Com ganas de trincar a humanidade inteira,?Vai trincando pasteis e barrigas de freira...
Erguendo-se:
E s?o três c?es, três c?es! Iago, Judas, Veneno,?Um odre imundo, um chacal torto e um rato obsceno,?O meu amparo! Que vergonha!... Ao que eu cheguei!...?Três podengos de esquina a tutelar um rei!?Mas, que demónio! sou injusto... a verdade, a verdade?é que guardam o prédio e fazem-me a vontade...?Por amor à ra??o e n?o amor ao dono??Inda bem.... inda bem... tem de salvar o trono,?Se quiserem jantar... perdida a monarquia,?Adeus o regabofe e adeus a conesia!?Por isso est?o, como drag?es, de sentinela?Junto do rei, junto da copa e da gamela.?Defendem-me. E eu ainda os insulto!... coitados!?Mandri?es e glut?es, gostam de bons bocados...?Tambêm eu... Porque os hei-de, afinal, descompor??é da bílis, da inquieta??o, do mau humor?Em que eu ando... Nem sei... que demónio! foi praga...?Raios partam o doido e essa abantesma aziaga?Do cronista!... N?o há que ver, fazem-me tonto!...
Vendo o pergaminho:
Mais esta geringon?a inda por cima!
Indo a assinar:
Pronto!
O DOIDO, _na escurid?o_
Ai, a minh'alma anda perdida, anda perdida?Ou pela terra, ou pelo ar ou pelo mar...?Ai n?o sei dela... ai n?o sei dela... anda perdida,?E eu há mil anos correndo o mundo sem na encontrar!...?Pergunto às ondas, dizem-me as ondas:?--Pergunta ao luar...--?E a lua triste, branca e gelada,?N?o me diz nada... n?o me diz nada...?P?e-se a chorar!?Pergunto aos l?bos, pergunto aos ninhos,?E nem as feras, nem os passarinhos?Me dizem onde habita, em que logar!...?Sangram-me os pés das fragas dos caminhos...?N?o tenho alma, n?o tenho pátria, n?o tenho lar!...?Ai, quanta vez! ai, quanta vez!?N?o passará talvez?A minh'alma por mim sem me falar!?Quem reconhece o cavaleiro antigo?Neste mendigo?R?to e doido... quem há-de adivinhar?!...?Adivinhava ela... adivinhava!...?O c?o no escuro, pela serra brava,?N?o vai direito ao dono a farejar??Adivinhava... é que está presa... é que está presa!?Ontem sonhei... (lembro-me agora!) que está presa?Naquela bruta fortaleza,?Numa cova sem luz, num buraco sem ar,?E que os carrascos esta noite, de surpresa,
A v?o matar! a v?o matar! a v?o matar!...
Por isso o mar anda a rezar!...
Por isso a lua desmaiada,
Sem dizer nada... sem dizer nada...
A olhar p'ra mim, branca de dor, fica a chorar!...
Ribombam trov?es, fusilam relampagos. Os c?es, espavoridos, ululam sinistramente.
O REI, _alucinado, clamando_:
é demais! é demais!... P?e-me o caco do avesso!...?Um frenesim... Que fúria!... irrita-me... endoide?o...?E anda às soltas êste ladr?o dêste espantalho!...?Eu já o ensino, já o arranjo... um bom vergalho...?Marquês! marquês! marquês!
SCENA IV
*O rei, Opiparus e Ciganus*, acudindo
OPIPARUS:
Meu Senhor!...
CIGANUS:
Meu Senhor!...
O REI, _alucinado_:
V?o-no prender!... v?o-no prender!... Um salteador...?Tragam-mo aqui aos pés, de rastros, maniatado!...?Tragam-no aqui!...
OPIPARUS, _à parte_:
El-rei endoideceu, coitado!
CIGANUS:
Meu Senhor! meu Senhor, que indigna??o!... Dizei,?Alguem desacatou a pessoa d'el-rei,?Por acaso?
O REI:
Um fantasma louco entre o arvoredo...
OPIPARUS:
Um fantasma?!... Ilus?o... O ar atord?a...
CIGANUS:
Mêdo?De que? de agoiros infantis, de sonhos vagos??Com ministros leais e escudeiros bem pagos,?Que teme el-rei?!...
O REI:
N?o foi vertigem, n?o foi sonho...?Um brutamontes alienado, um gigante medonho?Que me n?o deixa... Quero vê-lo... Ide prendê-lo... andai...
CIGANUS:
Mas que fantasma é êsse aterrador?
O REI, _levando-os ao balc?o e apontando_:
Olhai!?Alêm!... alêm!... alêm!...
CIGANUS:
Strambótica figura!...?é singular... é singular...
OPIPARUS:
Crime ou loucura...?Por certo um doido...
O REI:
Há já três noites, sem descanso,?Uivando loas s?bre loas...
OPIPARUS:
Doido manso...
O REI:
Ide prendê-lo!... amorda?ai-o, maniatai-o!?N?o me larga esta insónia há três noites!... Um raio?Dum profeta a grunhir cantoch?es de defuntos!...?Boa carga de pau... bom marmeleiro aos untos...?Mas vejam lá que o diabo às vezes, com a telha,?N?o arme algum chinfrim... Peguem-no de cernelha!
SCENA V
O rei, inquieto, preocupado, senta-se ao fog?o. Os c?es abeiram-se, uivando medrosos. Redobra a tormenta. Pestanejam, contínuos, relampagos formidáveis.
O DOIDO, _no escuro, em voz plangente?de embalar crian?as_:
Os vivos tem mêdo aos mortos,?Que andam de noite ao luar...?Fantasmas de mortos?S?o enganos mortos...?Deixem-nos andar... deixem-nos andar!...
Os vivos tem mêdo aos mortos,?Que andam sonhando a penar...?Quimeras de mortos?S?o desejos mortos...?Deixem-nos sonhar... deixem-nos sonhar!...
Os vivos tem mêdo aos mortos,?Que andam cantando a chorar...?As can??es dos mortos?S?o suspiros mortos...?Deixem-nos cantar... deixem-nos cantar!...
O REI:
O doido! o doido! o doido!
A MESMA VOZ, _na escurid?o_:
N?o lhes tenham mêdo... deixem-nos cantar...
SCENA VI
Entram Ciganus e Opiparus acompanhando o fantasma, em meio de escudeiros armados e com archotes. O doido aparece tal qual o descrevemos: enorme, cadavérico, envolto em farrapos, as longas barbas brancas flutuando. Numa das m?os o bord?o. Na outra um vélho livro em peda?os. Lembra um doido e um profeta, D. Quixote e o rei Lear. O olhar, cavo e misterioso, é de sonambulo e de vidente. O rei empalidece como um sudário. Os c?es ululam, furiosos e trémulos.
CIGANUS:
Eis o doido... é curioso êste Matusalem...?Como se chama? onde nasceu? de onde vem??Ignora tudo... Canta e solu?a...
OPIPARUS:
De resto,?N?o tem fúrias, nem anda armado: um doido honesto.
O REI:
Que estafermo!... que monstro!... Um espi?o, talvez...
OPIPARUS:
Deixou-se maniatar, prender, qual uma rês?Submissa... N?o, um doido...
CIGANUS:
Um doido extravagante... Quem és? Despacha a língua... olha que estás diante?D'el-rei... Diz o teu nome...
OPIPARUS:
O teu nome, vil?o!
O DOIDO, _absorto_:
Como me chamo... como me
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