chamo?...?Ai! n?o me lembro... perdi o nome na escurid?o...
CIGANUS:
Sempre a mesma resposta inalterável...
O REI:
Diz?De donde vens? onde nasceste? em que país??Nada temas... El-rei é bom, podes falar...
O DOIDO, _sonambulo_:
N?o tenho alma... n?o tenho pátria... n?o tenho lar...
O REI:
Traz um livro na m?o, reparai...
CIGANUS, _tomando o volume, que o?doido entrega, pesaroso_:
Deixa ver... Deixa-mo ver... um livro antigo... Sabes ler??Tu sabes ler?
OPIPARUS:
Anda, responde, n?o te encolhas...
CIGANUS, _abrindo o livro_:
Nem princípio, nem fim; trapos todas as f?lhas.
Folheando e lendo:
?_Esta é a ditosa pátria minha amada...
Alguns traidores houve algumas vezes...
Porque essas honras v?s, êsse oiro puro
Verdadeiro valor n?o d?o...
........................................
A que novos desastres determinas
De levar êstes reinos, esta gente?...
........................................
..............apagada e vil triteza_...?
O REI:
Parece verso...
CIGANUS, _restituindo o livro_:
Um alfarrábio fedorento, Coisa de prègador, talvez... cheira a convento...
CIGANUS:
Quem sabe se algum vélho ermit?o alienado,?Dêsses que vivem sós, longe do povoado,?Em ermos alcantis ou cavernas de fera...
OPIPARUS:
Onde dormes?
O DOIDO:
Dormir!... dormir!... Oh, quem me dera?Dormir!... Oh, quem me dera esta cabe?a vaga,?Esta cabe?a tonta, arrimá-la a uma fraga,?E quedar-me p'ra sempre esquecido no ch?o!...?E os mortos dormem... e eu morri... ent?o... ent?o?Porque n?o durmo?!...
Vagueando os olhos esgazeados pelos retratos da dinastia de Bragan?a, e como que recordando-se gradualmente, em sonho, dum escuro passado, abolido e longínquo:
Olha os bandidos... os traidores!... Bem nos conhe?o!... f?ram êles... subtilmente
Rosnam os c?es, enfurecidos.
Com drogas más e com venenos de serpente,?Sem eu saber, de noite e dia, a pouco a pouco,?Me levaram a alma e me tornaram louco...?Enlouqueceram-me, endoidaram-me os bandidos!...?A minha alma!... a minha alma!... Ou?o gemidos...?S?o talvez dela... tem-na aqui encarcerada...?Onde estás, onde estás, alma desamparada?!...?Grita por mim!... onde é que estás?!... Ai, quero emfim?Ver-te comigo... Onde é que estás?!...
Os c?es, truculentos, investem com êle. Resignado e com desprêzo:
Ah, c?es danados... c?es d'el-rei... mordei, mordei?êste corpo sem alma!... Ah f?sse outrora... outrora!...?E ai dos cachorros e do dono!... Assim... agora...?Mordei, mordei, ladrai, despeda?ai sem p'rigo?A minha carne e os meus andrajos de mendigo!...
CIGANUS:
Coitado! um noitibó maluco e mansarr?o...
OPIPARUS:
Delírio de tristeza e de persegui??o...
O REI:
Astrologus talvez o conhe?a...
CIGANUS:
O far?ante!?Prègador, impostor, mágico, nigromante,?Meio raposa e meio c'ruja...
O REI:
é tal e qual... perfeito...?Mas o demónio do mostrengo tem seu geito?Para enigmas... Quem sabe!... Ide-o chamar... talvez...
SCENA VII
Opiparus vai em procura do cronista. O doido, sonambulo, vagueia em t?rno do sal?o, contemplando os retratos. O rei ao lume, junto dos c?es, segue-o com os olhos.
CIGANUS, _meditando_:
Bem complicado êste cronista!... Quem o fez?Teve artes de engendrar singular criatura,?Contraditória, ondeante, incerta, ambígua, obscura...?Há duas almas no mostrengo: a que arquitecta?Quimeras v?s e sonhos v?os, a do poeta?Lunático, imbecil, místico, iluminado,?Essa deixá-la andar, que me n?o dá cuidado!,?Mas a outra, a ambiciosa, a gulosa, a mesquinha,?A refalsada, (a verdadeira!) a igual à minha,?Essa mais devagar, Saltamontes... cautela!...??lho nela... ?lho nela...?O rei é tudo, o rei fraco... êste cronista?Discursa bem... convem n?o o perder de vista...?Inútil. Afinal as duas almas ao cabo?Destroem-se uma à outra, é como Deus e o Diabo.?E emquanto que ambas a ferver, drogas contrárias,?Em mil combina??es, imprevistas e várias,?Se desagregam, eu, tranqùilo e resoluto,?Como tenho uma só, imagino e executo.?Ah, o cronista ambíguo e magro e macilento?N?o pasmarei de o ver ainda num convento...?Bem capaz de morrer, jejuando, ermit?o...?A loucura subtil envolve-o...
Que trov?o! Que relampago!... Brada o vento... ulula o mar...?E êste doido esquisito e singular, a olhar...?A olhar... Que leve o demo a noite e a ventania...
O REI, _seguindo o doido com os olhos_:
Pois agora embirrou! n?o larga a dinastia...
O DOIDO, _absorto_:
Fantasmas de mortos?S?o enganos mortos...?N?o lhes tenham mêdo... deixem-nos sonhar...
SCENA VIII
Entram Opiparus e Astrologus.
O REI, _ao cronista-mór_:
Conheces porventura?êste doido?
ASTROLOGUS:
Conhe?o.
O REI:
é doido?
ASTROLOGUS:
Na figura,?Na voz, no olhar, em tudo o podeis ler, Senhor.
O REI:
E como endoideceu?
ASTROLOGUS:
De miséria e de d?r.
O REI:
Há muito?
ASTROLOGUS:
Vai fazer três séculos...
CIGANUS:
A vista?Do espantalho endojou a mioleira ao cronista...
O REI:
Três séculos!... caramba! ent?o que idade tem??Mil anos?...
ASTROLOGUS:
Quási...
OPIPARUS:
Pronto! endoideceu tambêm!
ASTROLOGUS:
A mil n?o chega ainda; oitocentos...
CIGANUS:
Coitado!?Endoideceu! doido varrido e confirmado!
O REI:
Gracejas?
ASTROLOGUS:
N?o perdi a raz?o, nem gracejo...?Acaso, meu Senhor, n?o vedes, como eu vejo,?Neste gigante, em seu aspecto e seu fadário,?O quer que seja de extra-humano e de lendário??Maior que nós, simples mortais, êste gigante?Foi da glória dum povo o semideus radiante.?Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,?Seu torr?o dilatou, inóspito montado,?Numa pátria... E que pátria! a mais formosa e linda?Que ondas do mar e luz do luar viram ainda!?Campos claros de milho mo?o e trigo loiro,?Hortas a rir, vergeis noivando em frutos d'oiro,?Trilos de rouxinóis, revoadas de andorinhas,?Nos vinhedos pombais, nos montes ermidinhas,?Gados nédios, colinas brancas, olorosas,?Cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas,?Selvas fundas, nevados píncaros, outeiros?D'olivais, por nogais frautas de pegureiros,?Rios, noras gemendo, azenhas nas levadas,?Eiras de sonho, grutas de génios e de fadas,?Riso, abundancia, amor, concórdia, juventude,?E entre a harmonia virgiliana um povo rude,?Um povo montanhês e heróico à beira-mar,?Sob a gra?a de Deus, a cantar e a lavrar!?Pátria feita lavrando e batalhando: Aldeias?Conchegadinhas sempre ao torre?o de ameias.?Cada vila um castelo. As cidades defesas?Por muralhas, basti?es, barbac?s, fortalezas.?E a dar a
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