Os sonetos completos de Anthero de Quental | Page 5

Antero de Quental
nitidez dantesca.
O seu pessimismo torna-se systematico: é uma philosophia inteira, a
que corresponde, como expressão sentimental, a ironia transcendente.
Na _Disputa em Familia_, Deus responde aos atheus:
Muito antes de nascerem vossos paes
D'um barro vil, ridiculas
creanças,
Sabia eu tudo isso... e muito mais!
No _Inconsciente_, este heroe metaphisico, diz assim:
Chamam-me Deus ha mais de dez mil annos...
Mas eu por mim não
sei como me chamo.

Na _Divina Comedia_ os homens queixam-se aos deuses do que
soffrem, invectivando-os pelos terem creado.
Mas os deuses com voz ainda mais triste
Dizem:--Homens! porque é
que nos creastes?
Como se vê, houve um progresso. No periodo anterior a negação era
violenta e terminante; agora tem como expressão a ironia que é uma
das formas conhecidas do saber, e uma das linguagens da verdade. Eis
ahi o que a reacção moral conseguiu, acompanhada pelo esclarecimento
da razão, da intelligencia e do conhecimento. O antigo poeta satanico,
transformado em um nihilista, vemol-o agora na pelle de um pessimista
systematico, sorrindo já bondosamente, com a ironia n'esses proprios
labios que, primeiro cobertos de espuma, depois nos appareciam
brancos de agonias.
Não tinha eu razão para chamar cyclica a esta collecção de sonetos?
Não tem sido este o movimento das idéas, a evolução do pensamento
creador na segunda metade do nosso seculo?
Quando escreveu o primeiro soneto da quarta serie (1880-4)
Já socega, depois de tanta lucta,
Já me descança em paz o coração...
Anthero de Quental resolveu destruir todas as suas poesias _lugubres_.
Sentia remorsos por alguma vez ter estado n'uma disposição de animo
que agora considerava com horror. Entendia que esses versos tetricos
não podiam consolar ninguem, e fariam mal a muita gente. Destruiu-os,
pois, com aquella violencia propria de um caracter intermittentemente
meigo e frenetico como o de uma mulher. D'esse naufragio onde se
perderam verdadeiras obras-primas, salvei eu as poesias que vão no fim
d'este ensaio; e salvei-as porque as possuia entre os originaes
remettidos em cartas, e mais de uma vez como texto de noticias do
estado do seu espirito, ou cartas rimadas.
Que especie de paz era porem essa em que o seu coração descançava?
Era o _Nirvâna_:

E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge a custo d'esse mundo
morto
E torna a olhar as cousas naturaes,
Á bella luz da vida, ampla, infinita
Só vê com tedio em tudo quanto
fita
A illusão e o vasio universaes.
O Nirvâna é o ceu do buddhismo, a religião mais philosophica e menos
phantasmagorica inventada pelos homens. É por este motivo que o
buddhismo attrae hoje em dia todos os espiritos a um tempo
racionalistas e mysticos, d'esta epocha em tudo similhante á
alexandrina, menos no volume do saber positivo que já se não
compadece com muitas das theorias sobre que os néoplatonicos
especulavam. A theoria da Substancia levou-os a elles a uma concepção
do Ser que produziu o mytho do Verbo christão, encarnado
popularmente em Jesus-Christo. Ora hoje tudo isso vale apenas como
documento historico, e, por paradoxal que isto pareça, o Não-Ser é,
segundo a metaphisica contemporanea, a essencia de tudo o que existe.
O Absoluto é o Nada. O Universo, a realidade inteira, são modalidades,
aspectos fugitivos, que só se tornam verdades racionaes quando nos
apparecem despidas de todos os accidentes. E como é pelos accidentes
apenas que nós, distinguindo-as, as conhecemos, a realidade
verdadeiramente e em si é Nada.
Religiosamente, Nada é egual a Nirvâna; e o buddhismo é a única
religião que attingiu esta conclusão, summaria do pensamento
scientifico moderno. O Nirvâna é esse estado em que os seres,
despindo-se de todas as suas modalidades e accidentes, de todas as
condições de realidade, condições que os limitam distinguindo-os entre
si, adquirem a não-realidade (o não-contingente) e com ella a existencia
absoluta e a absoluta liberdade. Essa liberdade é o typo e a essencia da
vida espiritual; e o Nirvâna, puro Não-Ser para a intelligencia, é, para o
sentimento moral, o symbolo e o vehiculo de toda a perfeição e virtude:
radicalmente negativo na esphera da razão, é, na esphera do sentimento,
absolutamente affirmativo. O pessimismo torna-se d'esta fórma um
optimismo gigantesco; toda a inercia é condemnada, e o systema das
cousas, agitando-se, movendo-se na direcção do anniquilamento final,
move-se e agita-se no sentido de uma liberdade evolutivamente

progressiva até attingir a plenitude. O Universo é uma grande vida que
tem, no termo, o termo de todas as vidas--a morte, idealisada agora e
tornada luminosa e appetecivel por essa idealisação.
Leiam-se os dois sonetos _Redempção_, talvez os mais bellos de todo o
livro, e comprehender-se-ha melhor o que fica dito. Leia-se o _Elogio
da morte_
Dormirei no teu seio inalteravel,
Na communhão da paz universal,

Morte libertadora e inviolavel!
e ver-se-ha quanto estamos longe do desespero tragico de outros annos.
A tempestade acalmou.
Na esphera do invisivel, da intangivel,
Sobre desertos, vacuo,
soledade,
Vôa e paira o espirito impassivel
presidindo á
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