Os sonetos completos de Anthero de Quental | Page 4

Antero de Quental
proprio modo por que estão
expressas, para nos mostrar que o poeta não saiu ainda das espheras da
representação elementar dos seres, para a esphera comprehensiva das
abstracções racionaes. Os sonetos d'esta primeira serie desenrolam-se
no terreno da phantasmagoria transcendente. O traço mais seguro de
todos e o mais significativo está n'este verso:
Que sempre o mal peior é ter nascido.
A segunda serie tem a data de 1862-6. Psychologicamente é a menos
original, artisticamente é a mais brilhante. O _Sonho oriental_, o
_Idyllio_, o _Palacio da Ventura_, são obras primas, até de colorido.
Talvez por isso mesmo que o estado de espirito do poeta o não
obrigava a tirar tanto de si, e porque n'esta epocha viveu mais á lei da
natureza; talvez por isso mesmo a sentiu e pintou melhor nas suas côres,
nas suas imagens.
A nebulose do primeiro periodo começava a resolver-se n'uma tragedia
mental, que umas vezes tem os sonhos dos que mastigam haschich,
outras vezes furias de desespero, ironias como punhaes e gritos
lancinantes:
Se nada ha que me aqueça esta frieza,
Se estou cheio de fel e de
tristeza,
É de crer que só eu seja o culpado.
Meu pobre amigo, como foi amarga esta epocha! Outros soffreram
tambem, outros penaram eguaes dores, sem conseguirem porem
estrangular os monstros que defendem os áditos do templo da
Sabedoria. Heine e Espronceda, Nerval e Baudelaire viveram vidas
inteiras n'esse estado de ironia e de sarcasmo, de desespero e de raiva,
de orgia e de abatimento, de furia e de atonia, que para ti representam
quatro annos apenas!
Mas é que não havia em nenhum d'esses homens a semente de
abstracção que se descobre no _Palacio da Ventura_:
Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só,

cheio de dor,
Silencio e escuridão--e nada mais!
Os romanticos, mais ou menos satanistas ou satanisados, ficavam-se
por aqui. Achando apenas silencio e escuridão onde tinham sonhado
venturas, ou davam em bebedos como Espronceda, ou suicidavam-se
como Nerval, ou faziam-se cynicos, á maneira de Baudelaire,
cultivando com amor as _Flores do Mal_.
De 1864 a 74, n'esses dez annos em que a tempestade caminha, vê-se a
onda negra da desolação espraiar-se; vê-se o «silencio e a escuridão»
que antes surgiam como surprezas medonhas, ganharem um logar
apropriado, embora eminente, no regimen das cousas; vê-se o espirito
do philosopho reagir sobre o temperamento do poeta, e tornar-se
systema o que até ahi era furia. Bom prenuncio.
N'esta epocha Anthero de Quental é nihilista como philosopho,
anarchista como politico: é tudo o que fôr negativo, é tudo o que fôr
excessivo; e é-o de um modo tão terminante, tão dogmatico e tão
affirmativo, que por isso mesmo hesitamos em crer na consciencia com
que o é. Da sinceridade não é licito duvidar, mas contra a segurança
depõe a propria violencia. A nevrose contemporanea, que produzira
n'elle a terceira epocha, dá de si ainda a quarta; mas se poude galgar a
saltos por entre a floresta incendiada que devorou e consumiu os
satanicos, não poderá tambem sair da steppe lugubre onde apodrecem
os pessimistas, embriagados na negação universal, sem se lembrarem
de que são contradictorios no proprio facto de prégarem o que quer que
seja?
Ora a isto responde esta propria serie, porque, ao lado dos sonetos
crepuscularmente desolados, levantam-se como auroras os sonetos
stoicos. Para curar o poeta da vertigem satanica serviu-lhe a
methaphisica pessimista; para o curar mais tarde d'essa metaphisica,
servir-lhe-ha a reacção do sentimento moral sobre a razão especulativa.
Quando pede _Mais luz_, quando chama ao sol «O claro sol amigo dos
heroes», quando define a _Idea_ acabando por estes versos
diamantinos:

A Idea, o Summo bem, o Verbo, a Essencia
Só se revela aos homens
e às nações
No ceu incorruptivel da Consciencia!
sentimo-nos bem distantes das phantasmagorias do principio e das
loucuras da viagem, que todavia o poeta não terminou ainda.
Luctando furioso contra a desillusão, caindo esmagado pelo

anniquilamento, Anthero de Quental _ensimismou-se_ (para usar de
uma feliz expressão hespanhola) metteu-se dentro de si, a sós comsigo,
apellou para as energias do seu instincto de homem, e foi isso o que lhe
inspirou o bello _Hymno á Razão_.
Porem na lucta entre o temperamento de stoico e a imaginação
metaphisica, o seu espirito attribulado não conseguiu manter o
equilibrio, porque as suas exigencias de critico e philosopho
(alimentadas agora por leituras variadissimas e profundas)
contrariavam ou contradiziam as suas vizões de poeta. Á maneira que a
intelligencia se lhe cultivava, que o saber lhe crescia, que a experiencia
o educava com mais de um caso doloroso ou apenas
triste--apurava-se-lhe a imaginação até ao ponto de ver claramente o
que para o commum dos espiritos são apenas concepções do
entendimento abstracto. A sua poesia despe-se então de accessorios:
não ha quasi uma imagem; ha apenas linhas, mas essas linhas de
estatuas incorporeas tem uma
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