Os sonetos completos de Anthero de Quental | Page 6

Antero de Quental
evolução dos seres (V. o soneto _Evolução_) desde a
rocha até ao homem, evolução que seria absolutamente inexpressiva se
não tivesse um destino, um fim, um ideal. A theoria do progresso
indefinido é, com effeito, racionalmente absurda. Esse destino, para os
neo-buddhistas, é o Nada transcendente; esse ideal é a Liberdade. A
existencia está pois consagrada racionalmente: falta consagral-a
sentimentalmente. Falta ainda ao systema um medianeiro: é o Amor.
Porém o coração feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no
uso do penar tornado crente,
Respondeu: D'esta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é
isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.
O Universo está pois construido e sanctificado na mente do poeta e na
razão do philosopho. Dir-se-ha portanto que a chimera de que a
principio fallámos ficou desvendada, o problema resolvido, conciliada
a visão com a razão, e que nos não resta mais do que fazermo-nos todos
buddhistas? Supprema illusão! Creia-o embora o poeta: eu, como
critico, observando que o pensamento humano, desde que existe e

trabalha, progride sempre, com effeito, mas progride em tres estradas
parallelas que, por serem parallelas, nunca podem encontrar-se,
atrevo-me a affirmar a irreductibilidade do mysticismo, racional ou
imaginativamente concebido, e do naturalismo, ponderada ou
orgiacamente realisado. Atrevo-me a dizer que estes dois feitios ou
temperamentos são constitucionaes do espirito humano, e que da
coexistencia necessaria d'elles resulta um terceiro--o sceptico, o critico,
o que provêm da comparação de ambos, e por isso não tem côr, nem é
affirmativo; dando-se melhor com a natureza do que com a
phantasmagoria, preferindo a harmonia mais ou menos equilibrada, ou
mais ou menos claudicante do hellenismo, á orgia desenfreada dos
orientaes; considerando a existencia como um compromisso, o dever
como uma condição da vida, mas tambem a fraqueza como uma
condição dos homens. Estes tres temperamentos são correspondentes a
typos eternos e irreductiveis da consciencia humana; e, se o buddhismo
é a melhor religião para um mystico do seculo XIX, saturado de
sciencia e derreado de cogitações, o christianismo, como directo
herdeiro do hellenismo, hade eternamente satisfazer melhor os
scepticos e os naturalistas, cujo numero é e foi sempre infinitamente
maior, entre os europeos.
«Um hellenismo coroado por um buddhismo» eis a formula com que
mais de uma vez Anthero de Quental me tem exprimido o seu
pensamento--a sua chimera! Chimera, digo, por que a corôa não nos
póde assentar na cabeça, sob pena de a crivar de espinhos e de a deixar
escorrendo sangue. Fundar o principio da acção na inercia systematica,
a realidade no não-ser, a vida no anniquilamento, só é praticamente
acceitavel para o commum de homens quando acreditem na
metempsycose, dogma tão infantilmente mythico do buddhismo como
v. g. o inferno do christianismo. Ao christianismo, porém,
tirando-se-lhe tudo quanto a imaginação semita deu para a sua
formação, fica ainda o hellenismo, isto é, um idealismo mais ou menos
pantheista e uma theoria moral--cousas que eu não affirmo que resistam
a uma analyse rigorosamente logica, por isso mesmo que todo o nosso
conhecimento racional das cousas assenta apenas sobre axiomas do
senso commum--ao passo que, em se tirando a metempsycose ao
buddhismo, o buddhismo reduz-se a uma nevoa de abstracções.

Pobre humanidade, se se visse condemnada á coroação buddhista! Nós
europeos, incapazes de nos sujeitarmos ao regime da contemplação
inerte, soffreriamos as agonias, experimentariamos as afflicções do
poeta que, tendo no peito um coração activo, tem na cabeça uma
imaginação mystica, e, para obedecer ao pensamento, tortura o coração,
sem poder tambem esmagal-o sob o mando da intelligencia.
D'este cruel estado vêm os documentos que attestam a transformação
soffrida pela ironia dos periodos anteriores. Que nome se hade dar ao
sentimento que inspira os sonetos _Á Virgem Santissima_ e o _Na mão
de Deus_ que fecha o volume? Eu por mim chamarei humorismo
transcendente a essa liga intima da piedade e da ironia, e declaro que
nunca vi cousa parecida posta em verso. Em prosa, ha mais de um
periodo de Renan inspirado por um espirito similhante, embora menos
agudo.
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa,

E deixa-me sonhar a vida inteira!
A visão é a Virgem Santissima, e a poesia é tão sincera, tão verdadeira,
tão cheia de piedade e uncção, que eu sei de mais de um livro de resas
onde andam copias escriptas.
Dorme o teu somno, coração liberto,
Dorme na mão de Deus
eternamente!
Um monge christão escreveria isto. E Anthero de Quental nem é
christão, nem crê em Deus, nem na Virgem, segundo o sentido
ordinario da palavra crer.
Blasphemar era bom n'outros tempos; para a ironia tambem a idade
passou; finalmente para o _exercicio litterario_ nunca se inclinou a
penna que o poeta molhou sempre no seu sangue. Como explicar, pois,
o phenomeno?
Por acaso subiu já o leitor ao cume de
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