Os meus amores | Page 8

Trinidade Coelho
tempo que a palha,
voando, faz monte da outra banda, e os «baleios», em mãos de
mulheres, não cessam de arrebanhar o grão, varrendo em roda num afã...
Em certo ponto, carros vazios; um além, de altíssimas «angarelas»,
vai-se enchendo de palha; enquanto outros, atulhados de sacos, em
rimas entre as cancelas mais baixas, estridulamente chiando abalam

para as tulhas, levados pelos bois gigantes.
Eiras além, livres dos trilhos que ficavam em cima da palha, levas de
bois caminhavam vagarosamente, as largas orelhas pendentes, caudas
oscilantes afagando nas ancas espaçosas o luzidio pêlo. E lá vão
encosta abaixo, roçando pelos troncos ásperos dos castanheiros a
enorme corpulência, fartar o largo bandulho à serena água das ribeiras,
sorvendo vagarosamente, impando a cada sorvo, pesadamente,
monotonamente, parece que insaciáveis no meio da água em que se
atolam, submissa...
Ao fundo da eira, rente aos castanheiros escuros, um rancho de
mulheres cantava alegremente, em coro. Acabara de ensacar-se o
último grão da farta colheita do Tomé da Eira.
--Colheita rica, sim senhor! vinham dizer-lhe os vizinhos.--A primeira
da aldeia!
--Qual? isso sim! vão vocês ver a tulha. Muita palha, é que vocês
hão-de dizer, muita palha e pouco grão...
E muito azafamado, sem prosápias de maioral nem jeitos de soberba, as
mangas arregaçadas pelos cotovelos, o Tomé ia e vinha, dando ordens,
repetindo avisos, distribuindo aqui e além as últimas tarefas.
--Aí vai um saco, ó tu! É p'r'as «rabeiras». Que não fique nem um grão,
ouviram? É aviar, toca a aviar! Cautela que não fique por aí alguma
coisa esquecida: essas pás, esses «baleios», tudo isso. Margarida! ó
Margarida! qu'é da tua rasa? Deixa! se vai no carro está bem.
E era como um doido a meter-se no serviço de todos, muito expedito,
loquaz, alegre, pedindo pelas bentas almas que se não deixassem agora
dormir...
--Vamos lá! vamos lá! As pás, ó tu que cantas? Deixa-me por aí alguma,
que eu depois te ensinarei, ouviste?--Que faz aí no chão esse «rasouro»,
ó coisa?--Olha p'r'o que estás a fazer, tu: esses sacos que fiquem bem
atados.

O criado, que ia abalar com a carrada, perguntou, já de «aguilhada» no
ar, se era preciso mais alguma coisa.
--Não, podes ir. Ouves? lá em casa que tenham a ceia a horas. Avia-te.
Ouves, Francisco? Não piques os bois, a carrada é valente. A passo,
deixa ir os animais a passo. Vai-te.
Como o carro chiava, levantou a voz para dizer:
--Olha, descarrega na tulha do meio. Na tulha do meio, não ouves? Os
bois para o lameiro.
Mas o Francisco apontou dois sacos que ficavam:--«seria preciso vir
por eles?»
--Não vale a pena, lá irão.
E depois, para aquela gente, observou que bem sabia ele quem os
levava, aqueles dois sacos...
--Com mil demónios! Apostar que vocês não adivinham?
«Eles sabiam lá?... Quem quer podia levar os dois sacos, olhem agora!»
--O «Sultão», sabem? o «Sultão»! Esse é que os levava. E digo-vos
então que valia o dobro a colheita, assim me Deus salve!
Alguns riram da lembrança. «Tinha graça que a cisma do animal não
lhe passava nem à mão de Deus Padre!»
--A modos que isso é já mania, ó Sr. Tomé?
Nisto, porém, o lavrador soltou um «oh!» de surpresa. Voltaram-se
todos--«que era?» Na estrada que a eira dominava, um homem ia
passando, a cavalo.
--Vocês não querem ver, ó rapazes?! perguntou o lavrador, fazendo-se
pálido.--Aquele burro, hein? se não é o «Sultão» é o diabo por ele...

Recordaram:--«estrela malhada na testa, a mão direita branca»...
--É ele, com um milhão de diabos! não há que ver! E aquele é o ladrão!
E cuspindo nas mãos, e arregaçando mais as mangas da camisa,
arrancou, de um abanão, o cabo de uma «espalhadoura» e botou a fugir
direito à estrada.
Prestes ouviu-se um berreiro, as mulheres do rancho em alarido:
--Que o mata! gritavam todas.--Ai que o mata! Acudam! Ai a desgraça!
Nem a alma lhe deixa! Acudam!
Os homens deitaram a correr atrás dele, afluía gente de todas as bandas
da eira, os cães ladravam.
--Então, Sr. Tomé? olhe que se perde, Sr. Tomé! diziam-lhe, já
agarrados a ele.--Largue o cabo, que se desgraça! Tudo se faz a bem, Sr.
Tomé, largue vossemecê o cabo!
--Qual bem nem qual diabo! Qual larga? Arreda! Racho-lhe as costelas,
mais a vocês, se me não largam! Arreda!
E esbracejava furioso, levando-os de roldão, agarrados a ele mais ao
cabo. Chegou a ferir um, os outros desanimaram por instantes.
--Vê, Sr. Tomé?!
«Não via nada, não queria ver coisa nenhuma! Arreda!» E num
rompante de ira, abrindo brecha com um «sarilho», de um pulo saltou à
estrada, aos tropeções nas pedras que encontrava, mal se equilibrando.
--Abaixo! intimou.--Você é um ladrão!
--Um quê?
--Um ladrão! É meu esse burro! Hei-de matá-lo aqui, seu patife!
Deixem-me! larguem-me! Há-de aí ficar
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