Outras vezes, parece que variando de táctica, entrava de seguir muito
cauteloso, num ronceirismo pérfido, como um borrego ou como um cão,
certa mulher que passava. Até que lá ia uma focinhada, e logo após os
saltos do costume, respondendo com uma ameaça de pinotes à surpresa
da viandante.
--Dê, tia Luísa! bata nesse maroto! fazia de lá o Tomé, com ares de
zangado. E depois, batendo o pé, pedindo que lhe dessem uma
verdasca:--«Sultão»! venha já p'r'aqui! intimava.
E se encontrava um cão? Se encontrava um cão, ia logo direito a ele,
muito devagar, cauda caída, orelhas murchas, num cumprimento
humilde de focinho. O cão regougava, desconfiado, entreabrindo a
dentuça, preparando a sua dentada. Não dava o «Sultão» sinais de medo,
e humilde prosseguia para o outro, propondo paz. Mas ao primeiro
latido, recuava um passo, espertando da sua indolência passiva; e de
espinha arqueada ganhava o terreno perdido--fitando impassível o cão...
O bruto formava então o salto, regougando forte, o pêlo eriçado; e ao
investir para a primeira dentada, salvava-o de um pulo o «Sultão»,
evitando-o, até que por compaixão lhe dava um pequenino coice, «mais
feitio que outra coisa», pondo em fuga o mastim, corrido, ganindo,
vencido:
--Eh! valente! gritava-lhe então o Tomé.
E com duas palmadas na anca, espantava-o enfim para o cortelho,
dizendo ao correr a caravelha:
--Não há dinheiro que te pague, assim me Deus salve!
E comido o caldo-verde da ceia, nunca o Tomé da Eira ia para a cama
sem primeiro descer a ver o «Sultão»,--de candeia na mão esquerda, e
na direita, contra o sovaco, a bela quarta do grão, acogulada.
Muitas vezes acontecia esquecer-se o Tomé a vê-lo comer, de candeia
atenta, encostado à manjedoura, sorrindo: e, de cima, a Sr.^a Josefa
tinha de intervir então, gritando-lhe pelas frinchas do sobrado:
--Tomé, vê se te vens deitar, meu pasmado! olha que são horas.
E piamente, como fanático, achava verosímil a lenda da burra que
falou,--história que uma tarde, passando, o abade lhe contara. Tanto
que mais de uma vez, dando ao burro as boas-noites, estranhou com
certo desgosto que o «Sultão» lhe não respondesse:
--Boas noites!
* * * * *
Mas o demónio, que sempre as arma, armou-lha também um dia! Foi
ao cortelho, de manhã cedo, e não encontrou o burro. Ficou parvo!
Pôs-se a mirar, espantado, a loja que lhe pareceu enorme, e além de
enorme--gelada...
--Ó Josefa! Josefa! entrou de gritar da rua.--Ó Josefa!
A mulher assomou à janela, sobressaltada.
--Queres apostar que me roubaram o burro, ó mulher?!
--Que te roubaram o quê? fez a Sr.^a Josefa, muito atónita.
--O burro, o «Sultão»! Vem cá ver que mo roubaram!
E como ao tempo acudira já o Manuel, em camisa, descalço, romperam
todos três na gritaria, defronte do cortelho vazio:
--À d'el-rei! À d'el-rei! À d'el-rei!
Até que o regedor, que era compadre, intervindo estremunhado, pôs na
peugada do burro, mais dos larápios, os cabos que compareceram.
Mas em vão! Um a um foram regressando, pelo dia adiante, e
desfechando ao peito abatido do Tomé a negra e vazia palavra:
--Nada!...
II
Dois anos depois. Tarde de Agosto. Ao longe, fechando o horizonte
que a eira dominava, as arestas dos montes quebravam-se numa sombra
igual, e embaciavam ainda o poente as suaves, brandas pulverizações
doiradas da última luz do sol. Riscos vermelhos de nuvens, como
grandes vergas de ferro levadas ao rubro, destacavam imóveis num
fundo verde-mar, esvaecido e meigo, raiado de listrões de uma
coloração leve de laranja. Pequenos algodões transparentes, com
alvuras de neve, cortavam aqui e além, alegremente, a monotonia
profunda do azul. Num deslado, sob os castanheiros próximos, surgiam
os telhados da aldeia, a torre branca da igreja, as paredes caiadas da
escola.
A vasta eira comum, levemente acidentada, apresentava àquela hora o
aspecto tranquilo e de paz de uma grande oficina em repouso. Poucas
«medas», iam no fim as colheitas: mais uma semana, duas quando
muito, e estaria tudo recolhido. Já sobre a palha das «parvas» ou ao
sopé das «medas» altas, entre os utensílios da trilha e a criançada
estrídula que brincava, os da lavoura descansavam--vermelhos da
soalheira intensa de todo o dia, alguns deitados, em mangas de camisa,
peito nu, arregaçados os braços musculosos, numa prostração regalada
de matilha que alfim tem a sua hora de sossego, após um dia de caçada.
Parecem prostrados da fadiga os próprios malhos, os trilhos, as pás, os
«baleios» que levaram todo o santo dia varrendo o chão em volta das
«parvas». E aqui e ali, dando uma sensação agradável de fartura,
perfilam-se os altos sacos no meio das rasas, extravasando de grão.
Além, gente em mangas de camisa, ao redor de um grande montão de
palha triturada, vai «limpando»--visto que sopra um «ventinho». E
sente-se sobre as pás a chuva do grão, ao mesmo
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