estendido, como um cão!
E no meio da malta em alvoroço, com a arreata do burro na mão
esquerda, e na direita o minacíssimo cacete, berrava que o deixassem,
que ia tudo raso--«com seiscentos milhões de diabos!»
Seguiu-se altercação, vieram razões de parte a parte, insultos.
--Já lhe disse que você é um ladrão!
--Ladrão será você!--tornou-lhe o outro já de pé, avançando de punhos
cerrados.--E não mo diga outra vez, que o racho!
Aflitas, algumas mulheres voltavam-se, de mãos postas, para a
capelinha próxima, rogando o socorro da Virgem. O lavrador entrava
de tremer como varas verdes, desfigurava-o a raiva, uma saliva muito
branca bordejava-lhe os cantos da boca. Pela camisa rota, via-se-lhe já
um pedaço de ombro. Tinham, alfim, conseguido arrancar-lhe o cacete,
mas agora esbracejava, punhos no ar sobre aquelas cabeças em
desordem.
Já, para uns certos do grupo, o homem do burro se
desculpava:--«tinha-o comprado a uns ciganos, fossem lá adivinhar que
o burro era roubado...»
--Vê, Sr. Tomé? acudiram logo uns poucos.--O homem não tem
culpa.--E gritavam-lhe aos ouvidos:--Não tem culpa! Comprou o
animal na boa fé. Vês--aí está!
--Mente! objectava incrédulo o Tomé, cada vez mais irado.--Mente!
--Mente?! perguntava o outro de lá, assanhado.
--Como um judeu! cuspia-lhe da outra banda o Tomé.
De modo que para o convencerem, foi preciso afinal levá-lo quase à má
cara, chamar-lhe homem de rixas, despropositado, bulhento. Ele então,
abrindo os braços como se fosse para nadar, sossegou um pouco,
amainou,--prometeu levar aquilo com paciência, às boas. Chegou quase
a pedir desculpa, limpando com a manga branca as bagas das
camarinhas.--«Mas tinha perdido a cabeça, que lhe queriam?»
Chegou-se por fim a um acordo. «Sim, senhores, acomodava-se, mas
punha uma condição: largasse ele o burro, e o burro é que havia de
resolver...»
--Serve-lhe o contrato?
--Qual contrato?
--Mau! Larga-se o burro, você entende? deixa se o burro às soltas.
Depois, é p'ra onde ele for. Se o burro larga p'ra trás, lá p'r'as bandas
donde você vem... Você donde vem?
--Dos Casais.
--Pois aí está. Se o burro tomar p'r'os Casais, o burro fica seu...
--E tomando direito à aldeia, é do Sr. Tomé,--concluíram alguns do
grupo, conciliadores.
--Nem mais! Serve-lhe assim? Diga se lhe serve assim.
Por um desfastio, o outro concordou. Mas lá lhe parecia história que o
burro tomasse para a aldeia... Vinha de tão má vontade, que até lhe
custara tirá-lo de casa.
--Olhe que vai pr'os Casais! Digo-lhe então que vai pr'os
Casais...--afirmou.
--Melhor p'ra você. Mas nós veremos p'ra onde vai. Você está pelo
dito?--quis saber o Tomé.
--Sim senhor, estou! Pois que dúvida tem que estou? disse-lhe o outro
num rompante. Olhe: uma, duas, três; às três largo-lhe a arreata.
Ia já a abrir a boca para dizer--«uma!»
--Alto! fez o Tomé. Espere lá um pouco. Primeiro hei-de fazer duas
festas ao animal.
E pôs-se a bater-lhe na anca, no pescoço, no peito, demorando-se um
pouco a fitá-lo de frente, «para que o animal o conhecesse.»
--«Sultão»! gritou-lhe de repente. Eh! «Sultão»!
O burro estremeceu... Dir-se-ia que no fundo da sua memória, a
lembrança porventura adormecida daquele nome despertara
subitamente...
--Eh! Eh! riu-se muito satisfeito o lavrador. O burro, agora, vira-se p'ra
ali. Isso. Nem é p'r'os Casais nem p'r'o lugar. Assim. Eh! Eh!
E afastou-se para o lado, aguardando.
Uma ansiedade dominava naquele momento os do grupo; o Tomé
pôs-se a roer as unhas, nervoso...
--Então você porque espera? perguntou.
Ouviu-se logo a voz do outro, dizendo:
--À uma!...
O Tomé sentiu um calafrio; sapateava nervoso, cheio de medo, o olhar
de esguelha, e entre os dentes ferrados o polegar da mão direita...
--...às duas!
--Ih! c'um raio!... dizia baixo o Tomé.
E sem querer, os olhos cerraram-se-lhe com força.
--...às três!
Foi então um barulho de palmas, um berreiro atroador de vivas e
gargalhadas! O Tomé vencera: corriam todos a abraçá-lo, afirmando
que o caso era para foguetes.
--Viva o Sr. Tomé! Viva o «Sultão»! Aquilo é que é burro!
--Aquilo é que é amigo, hão-de vocês dizer!--emendava o Tomé a rir.
Tenho-os com dois pés, que não valem metade...
--Oh! Sr. Tomé! protestavam alguns.
--Isto não é com vocês, mas é como quem se confessa... Está visto que
não é com vocês.
E ria, ria como um perdido, enquanto, estrada fora, o «Sultão» corria
que voava, cauda no ar, corda de rastos, perdendo-se por fim lá ao
fundo, na poeirada imensa da estrada, como que nimbado num
resplendor de apoteose. E na peugada do burro, esbaforido e como
doido, seguia agora o lavrador, após o fraternal abraço, pregado no dos
Casais...
Quando o Tomé chegou a casa, ofegante, a suar, cheio de gestos e de
palavras entrecortadas de riso, já o «Sultão», relinchando, pateava à
porta do antigo cortelho, numa grande impaciência, um «rap-rap»
contínuo na soleira.
--Venham ver! Venham cá
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