votar o dono...
Mas era àquilo mesmo que o bom do lavrador achava graça. E punha-se
então a falar muito sério, entre resignado e cortês, para o pequeno e
desdenhoso jumento--o pão e o queijo esquecidos numa das mãos, na
outra a navalha de meia-lua:
--Então, «Sultão», não vens?
--Não! parecia responder-lhe o animal. E abstracto, continuava a
envolvê-lo no seu olhar profundo. A quebrar a harmonia daquela
imobilidade de estátua, apenas de quando em quando uma pequenina
patada na soleira, zap!
--Zangado, «Sultão»? perguntava o lavrador.--De mal comigo?
E prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir à vontade...--que
não fosse vê-lo o «Sultão»... Metia entre dentes um pedacito de queijo,
logo uma côdea de pão, e fazendo umas grandes rugas na testa, de
quem começa a zangar-se, voltava-se então muito sério:
--Ficas aí, «Sultão»? Já não és meu amigo?
O jerico abatia um pouco as orelhas, inclinava o pescoço, parece que
fazendo-se humilde...
--Então se és, anda daí. Olha...--E mostrava um pedacito de pão.--P'ra ti
se vieres...
O «Sultão» dava três passos, e ficava fora do cortelho. E por se vingar,
o Tomé carregava o semblante numa seriedade muito pesada, e
erguendo o rosto iracundo chamava-lhe interesseiro, maroto, afirmando
que já lhe não dava o pão. E desfechando-lhe enfim a ameaça de o
vender a um cigano, entrava a tratá-lo por senhor--sôr «Sultão»...
Mas o pequeno jumento ia andando muito devagar... andando... orelhas
baixas, pescoço caído, a modo de arrependido, parece que pedindo
perdão da arrelia.
Nervoso, sapateando, o Tomé voltava a cara para a outra banda, a rir
como um perdido.
--Diabo do jerico! diabo do ratão! Capaz é ele de fazer rir as pedras, o
mariola!--E tossia de engasgado, uma migalhita de queijo na goela.
No entanto, o «Sultão» ia avançando, muito ronceiro, até que tocava
com o focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O Tomé sacudia-o:
--Sai-te p'ra lá! dizia ele muito amuado, sem se voltar.--Cuidas talvez
que te não conheço, cuidas? Já te não quero, vai-te!
Mas como que irreflectidamente, fingindo não querer, chegava-lhe ao
focinho um pedacito do pão, o melhor da fatia. «Sultão» lançava um
olhar oblíquo, entre sorrateiro e medroso, levantava cautelosamente o
beiço superior, a tremer, e roubava-lho da mão.
Pazes feitas! Era então rir a perder, numas casquinadas agudas, muito
estrídulas.
--Credo, homem! dizia de cima, da janela, a Sr.^a Josefa.--Até pareces
doido!
--Você assim rouba seu dono? Diga! Você assim rouba seu dono?
perguntava o Tomé, nuns grandes gestos.--Vamos que eu lhe não
queria dar da merenda? Ladrão, de mais a mais!... Ora bem! agora
brinque.
Era precisamente o que o Tomé queria:--ver o «Sultão» a brincar.
...Nada, com efeito, meus amigos, que mais divertisse o bom do
lavrador, e melhor o indemnizasse daquelas fainas laboriosas que lhe
consumiam os dias, imperturbavelmente, perpetuamente, sob sóis
causticantes e chuvas torrenciais.
Por isso, era de ver como ele ria, com uma boa vontade deliciosa, das
«partidas» e «diabruras» do «Sultão»! Às vezes, o pequeno jumento,
ferido não sei por que vespa invisível, despedia sem mais nem menos
numa carreira aberta, focinho entre as pernas dianteiras, agitando a
cauda, por aquela rua fora. Rompia de toda a banda num alarido o
rancho pacífico das galinhas, que já no ar andavam como doidas,
cacarejando, como se um pé de vento as levasse. Acudia gente aos
postigos, às portas, às janelas, a ver a polvorosa; e súbito se inundava a
rua de rapazes, rotos, descalços, alguns quase nus, correndo atrás do
burro, gritando-lhe, acenando-lhe, espantando-o--como se o mesmo
vento de folia os houvesse varrido a todos, varrendo a própria rua... E
um lá ia a terra, e sobre esse passavam os outros, e sobre todos voava o
«Sultão», apupado, perseguido, aclamado, na malta espavorida dos
inimigos...
--«Sultão»! eh lá! «Sultão»!
Súbito, como se lhe estalasse a corda, o animal estacava, e logo de
volta dele postava-se a rapaziada, mas num alor de nova fuga, não lhe
desse na bolha atacá-los... E abriam alas de repente, quando ele,
tomado de novo acesso, voava para as bandas do dono, que por se não
deixar atropelar investia com o «Sultão» de braços abertos, o que era, já
se vê, um modo de o abraçar, fingindo medo. E vinham as gargalhadas
estrídulas, os rogos para que pusesse tréguas, as súplicas para que se
acomodasse, recuando o lavrador até ao último degrau da escada, onde
se deixava cair,--derrotado!
--P'ra lá, «Sultão»! p'ra lá! fazia então o Tomé, opondo-lhe os pés,
desviando-o, apoiando-se nos cotovelos, muito inclinado para trás, a rir
como um perdido.
Então o pequeno jumento estacava, ofegante. Mas prestes rompia a
girândola dos coices, em que era exímio, sacudindo muito as patas,
cauda no ar, muito direita, ao mesmo tempo que o Tomé solícito dava
aos rapazes o aviso de se arredarem--«porque era doido, aquele
demónio»!...
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