gesto, e interrogou:
--Então é ali?
--Ali mesmo--volveu-lhe já de marcha.
E repousando a mão direita sobre o ombro esquerdo da rapariga,
repetiu-lhe muito contente:
--É mesmo além.
Numa terra de restolho, um largo quadrado de cancelas marcava o
espaço que as ovelhas tinham de ocupar essa noite.
--Falta pouco; a gente vai pelo atalho que é só mau p'ra quem passa a
cavalo.
E como ele ia expansivo, e a companheira não dava palavra, quis então
saber:
--Estás triste, ó Rosária?
--Triste... não. Já agora... tem de ser--volveu-lhe cabisbaixa.
--Huum! Arrependeu-se...--volveu consigo o pastor.
* * * * *
Até que por fim chegaram, tinha anoitecido havia instantes. Gado para
dentro e toca a merendar; o que era de um era doutro: ele ainda trazia
azeitonas, um naco de queijo, pão. Mal acabaram de comer, o Gonçalo
apontou para a cabana que ficava ali perto, e propôs que se deitassem:
estavam moídos da soalheira de todo o dia e da caminhada agora.
Quando o Gonçalo e a Rosária entraram na cabana e se deitaram sobre
o colmo, cobrindo-se com as mantas, e achegando para a cabeça um do
outro os bornais que faziam de travesseiro, cerrara de todo a noite, e
formigueiros de estrelas cintilavam vivezas de prata polida no azul
indefinido do céu.
--E os lobos?--perguntou a Rosária com medo.
--Não há perigo--tranquilizou-a o Gonçalo.--Isso é lá com os cães.
* * * * *
Pouco a pouco, foi-se extinguindo no curral a música triste dos
chocalhos. A ladrar, os cães faziam eco. O rebanho devia dormir
profundamente, imerso no mesmo sono em que jazia prostrada toda a
Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois conversaram algum
tempo, num ciciar brando de vozes, até que por fim, vencidos da fadiga,
se deixaram adormecer,--quando a história das moiras encantadas ia no
seu melhor episódio...
E lá no alto céu, mesmo sobre a cabana, a estrela da tarde não era nem
mais pura nem mais luminosa do que a alma simples e boa daquelas
duas crianças...
Quando ao repontar da manhã se levantaram, e saíram a ver o céu...
--Bonito dia, Gonçalo!
--Bonito dia, Rosária! Olha...
...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando...
voando...
SULTÃO
(Copiado do Natural)
Ao meu Henrique e a Beldemónio, seu amigo.
I
Ao cair da tarde, o Tomé da Eira entrava em casa, cansado, esfalfado
de andar um dia inteiro a mourejar no campo.
--Meus pecados, boa tarde!--dizia ele para a mulher, com um sorriso a
afectar seriedade.
Vinha logo o pequeno, o Manuel, de mãos postas pedindo-lhe a bênção.
--Deus te abençoe.
--Pai, olhe que o «Sultão»... ia a dizer o pequeno.
--Bem sei! atalhava logo o Tomé.--O «Sultão» é um maroto e tu és
outro.
E enquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bela navalha de
meia-lua, que lhe custara um pinto havia bons quinze anos, e abria a
gaveta do pão, o Tomé punha-se a fazer de interesseiro consigo mesmo,
resmungando alto p'ra que a mulher o ouvisse:
--É que por este caminho não tenho um dia descansado... Nem uma
hora...
Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra.
--...Pois vamos já que já era tempo... Porque p'ra mim há-de chegar... A
modos que vou já cansando...
Mas o Tomé não era homem que dissesse estas coisas de coração.
Pareciam-lhe longos, intermináveis, os aborrecidos Domingos que
passava sem ir campos fora, madrugador como um melro.
--Uma aquela como outra qualquer! dizia o bom do Tomé encolhendo
os ombros, como quem está desgostoso com um génio assim.
Partiu uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua
cabrada, e veio sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra
que dava para a rua, arregaçado, em mangas de camisa, muito à
vontade.
Costume velho do Tomé:--mal se sentava, mastigando o «bocado»,
dizia logo para o filho:
--Ouves, Manuel? Bota cá fora o «Sultão».
O rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia
nos gonzos ao impulso dos seus bracitos roliços, e punha-se a pular de
contente, dizendo cá da rua:
--«Sultão»! Sai cá p'ra fora, «Sultão»!
No fundo negro do pequeno cortelho, na moldura rectangular da porta
baixa, destacava-se então a cabecita parda de um jumento, orelhas em
riste, grandes olhos de uma tristeza perpétua, num movimento moroso
de pálpebras pestanudas...
E ali se quedava parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas
pernas delgadas, a olhar o Tomé que o chamava,--um grande riso de
alegria nas feições amorenadas, contente de ver o seu «Sultão».
Mas o pequeno jumento não avançava um passo, divertindo-se em
arreliar o Tomé, fitando-o com um ar estagnado. Altivo na sua nobre
linha de quadrúpede de boa raça, alguém lhe poderia ler no olhar, mole
e impassível, o frio, gelado desprezo a que parecia
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