Os meus amores | Page 4

Trinidade Coelho
tinha de ser,--volveu-lhe triste a Rosária,--que as promessas
sempre fazem, lá isso...
E convicta, a pequena contou casos acontecidos para convencer o
Gonçalo de que sempre valiam as promessas. No entanto, deitado de
costas, com a jaqueta a fazer de travesseiro, as pernas em ângulo
tocando-se com os joelhos, o Gonçalo soprava pela palha o bugalhinho
que constantemente ia subindo e descendo, acompanhado pelo olhar
bondoso do cão que ali perto se deixara estar sentado. E contando,
contando casos, a Rosária ia entretendo o pastor. Mas quando ela fazia

pausa, logo o rapaz acudia, firme na sua objecção:
--Ora! mas a nossa Joaquina morreu-se! Coitadinha da Joaquina!
* * * * *
À medida que o sol ia subindo, no céu glorioso e fulvo, iam os dois
conduzindo as ovelhas para sítios mais ensombrados, para se livrarem
da estiagem que ia valente. Calor de rachar, ali por volta do meio-dia,
que foi quando tomaram para a banda das azinheiras, e para os
pinheirais, depois. E sempre ao lado um do outro, os dois companheiros
levaram de conversa quase o dia inteiro. Nunca tinham dado fé que as
horas passassem tão depressa. Ainda armaram aos pássaros, mas foi o
mesmo que nada, os demónios andavam espantados e já conheciam as
esparrelas.
--Olha lá não caiam,--tinha dito o Gonçalo, já cansado de estar à
espreita, agachado, com o fio da armadilha preso ao dedo.--Se eles
fossem tolos...
E foi-se a recolher as esparrelas, dando ao demónio os pássaros. Ela
então propôs que jogassem a pocinha.
--E o fito, ó Rosária? Sabes jogar ao fito? No adro, aos Domingos de
tarde, bato-me com qualquer, sabias?
E generoso:--Mas a ti dou-te partido: vinte e cinco às quarenta...
Como o tempo rendia, jogaram tudo--a pocinha, o fito, as necas, a
bilharda. Na bilharda, como o rafeiro trazia à mão, era ele que ia buscar
o pauzinho, quando zinia longe.
--Turco, traz cá!
* * * * *
No entanto, ia descaindo a tarde. Ao alto, o largo céu esmorecia no seu
azul suavíssimo. Em todo o espaço o ar estava tranquilo e sereno, e já
começava para poente a decoração fantástica do ocaso. Parece que se

ouvia mais distinto o marulhar das águas no rio; já não faiscava assim
tão viva a areia branca das margens.
Foi quando o Gonçalo lembrou que era melhor irem-se chegando, mais
as ovelhas, para as terras onde tinham de pernoitar. E fitando fixamente
os olhos negros da Rosária, disse-lhe assim:
--Mas olha o que prometeste... Inda vais feita no que disseste?
«Ora que lhe custava a ela! Já que as ovelhas tinham andado juntas
todo o santo dia, que mais era que dormissem no mesmo curral, essa
noite?»
--E o mais, ó Rosária?--perguntou de novo com interesse.
A pequena ficou perplexa. Mas como o pastor não cessava de a olhar,
respondeu:
--Também.--E sorriu-se.--Pois eu...
Só depois desta segunda promessa o Gonçalo se levantou, e deu o sinal
de partida, assobiando aos cães.
Daí a pouco, estavam de marcha para o curral, Quando passavam a
velha ponte, a obliquidade dos raios do sol fazia alongar
desmedidamente pelo areal a sombra dos três arcos. Nas rugas da
corrente, uma luz alaranjada tremeluzia, tirando à água a sua
translucidez normal.
--É bonito!--fez notar o pastor.
A Rosária explicou logo:
--São as moiras a caçar com redes de oiro, sabias?
Para a outra banda, um pouco mais abaixo, assomavam à flor da
corrente as cabeças dos dois rapazotes do moleiro. Dentro da chata que
vogava serenamente, a mãe com o mais novito ao colo não os perdia de
vista, enquanto o pai, em mangas de camisa, de pé num topo de fraga,

lhes ia ensinando as manobras. Ao fundo, três vitelas passavam o rio a
vau, muito devagar, parando a espaços, alongando o pescoço para a
veia de água serena, bebendo mansamente. Sobre o vitelo das malhas
brancas, o guardador cantarolava, acenando com o chapéu ao
moleiro--«boas tardes! boas tardes!» Ao sair da ponte, o rebanho teve
de se afastar um pouco do caminho: aproximava-se um almocreve com
a longa fila de machos carregados, tilintando campainhas.
--Adeus pequenos! cumprimentou.
--Venha com Deus!--tornaram-lhe ambos.
E de novo se puseram em marcha. As ovelhas continuavam
confundidas, confraternizavam os cães como bons e leais amigos. À
frente, o Gonçalo ia tocando na flauta o mesmo que a Rosária cantava.
O brando rumor dos chocalhos, que se levantava de todo o rebanho,
casava-se com a música, fundindo-se numa nota subtil, de um pitoresco
ingénuo de balada...
Até que chegaram a um topo de serra, escurentado de matagal rasteiro,
e então, parando um momento, o Gonçalo perguntou, colocando na sua
frente a Rosária, e pondo-lhe à cara a flauta, na direcção em que devia
olhar.
--Vês além... neste direito? Resvés do castanheiro, não enxergas?
A outra fez que sim com um
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 77
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.