caminhada agora.
Quando o Gon?alo e a Rosária entraram na cabana e se deitaram sobre o colmo, cobrindo-se com as mantas, e achegando para a cabe?a um do outro os bornais que faziam de travesseiro, cerrara de todo a noite, e formigueiros de estrelas cintilavam vivezas de prata polida no azul indefinido do céu.
--E os lobos?--perguntou a Rosária com medo.
--N?o há perigo--tranquilizou-a o Gon?alo.--Isso é lá com os c?es.
* * * * *
Pouco a pouco, foi-se extinguindo no curral a música triste dos chocalhos. A ladrar, os c?es faziam eco. O rebanho devia dormir profundamente, imerso no mesmo sono em que jazia prostrada toda a Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois conversaram algum tempo, num ciciar brando de vozes, até que por fim, vencidos da fadiga, se deixaram adormecer,--quando a história das moiras encantadas ia no seu melhor episódio...
E lá no alto céu, mesmo sobre a cabana, a estrela da tarde n?o era nem mais pura nem mais luminosa do que a alma simples e boa daquelas duas crian?as...
Quando ao repontar da manh? se levantaram, e saíram a ver o céu...
--Bonito dia, Gon?alo!
--Bonito dia, Rosária! Olha...
...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando... voando...
SULT?O
(Copiado do Natural)
Ao meu Henrique e a Beldemónio, seu amigo.
I
Ao cair da tarde, o Tomé da Eira entrava em casa, cansado, esfalfado de andar um dia inteiro a mourejar no campo.
--Meus pecados, boa tarde!--dizia ele para a mulher, com um sorriso a afectar seriedade.
Vinha logo o pequeno, o Manuel, de m?os postas pedindo-lhe a bên??o.
--Deus te aben?oe.
--Pai, olhe que o ?Sult?o?... ia a dizer o pequeno.
--Bem sei! atalhava logo o Tomé.--O ?Sult?o? é um maroto e tu és outro.
E enquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bela navalha de meia-lua, que lhe custara um pinto havia bons quinze anos, e abria a gaveta do p?o, o Tomé punha-se a fazer de interesseiro consigo mesmo, resmungando alto p'ra que a mulher o ouvisse:
--é que por este caminho n?o tenho um dia descansado... Nem uma hora...
Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra.
--...Pois vamos já que já era tempo... Porque p'ra mim há-de chegar... A modos que vou já cansando...
Mas o Tomé n?o era homem que dissesse estas coisas de cora??o. Pareciam-lhe longos, intermináveis, os aborrecidos Domingos que passava sem ir campos fora, madrugador como um melro.
--Uma aquela como outra qualquer! dizia o bom do Tomé encolhendo os ombros, como quem está desgostoso com um génio assim.
Partiu uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua cabrada, e veio sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra que dava para a rua, arrega?ado, em mangas de camisa, muito à vontade.
Costume velho do Tomé:--mal se sentava, mastigando o ?bocado?, dizia logo para o filho:
--Ouves, Manuel? Bota cá fora o ?Sult?o?.
O rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia nos gonzos ao impulso dos seus bracitos roli?os, e punha-se a pular de contente, dizendo cá da rua:
--?Sult?o?! Sai cá p'ra fora, ?Sult?o?!
No fundo negro do pequeno cortelho, na moldura rectangular da porta baixa, destacava-se ent?o a cabecita parda de um jumento, orelhas em riste, grandes olhos de uma tristeza perpétua, num movimento moroso de pálpebras pestanudas...
E ali se quedava parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas pernas delgadas, a olhar o Tomé que o chamava,--um grande riso de alegria nas fei??es amorenadas, contente de ver o seu ?Sult?o?.
Mas o pequeno jumento n?o avan?ava um passo, divertindo-se em arreliar o Tomé, fitando-o com um ar estagnado. Altivo na sua nobre linha de quadrúpede de boa ra?a, alguém lhe poderia ler no olhar, mole e impassível, o frio, gelado desprezo a que parecia votar o dono...
Mas era àquilo mesmo que o bom do lavrador achava gra?a. E punha-se ent?o a falar muito sério, entre resignado e cortês, para o pequeno e desdenhoso jumento--o p?o e o queijo esquecidos numa das m?os, na outra a navalha de meia-lua:
--Ent?o, ?Sult?o?, n?o vens?
--N?o! parecia responder-lhe o animal. E abstracto, continuava a envolvê-lo no seu olhar profundo. A quebrar a harmonia daquela imobilidade de estátua, apenas de quando em quando uma pequenina patada na soleira, zap!
--Zangado, ?Sult?o?? perguntava o lavrador.--De mal comigo?
E prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir à vontade...--que n?o fosse vê-lo o ?Sult?o?... Metia entre dentes um pedacito de queijo, logo uma c?dea de p?o, e fazendo umas grandes rugas na testa, de quem come?a a zangar-se, voltava-se ent?o muito sério:
--Ficas aí, ?Sult?o?? Já n?o és meu amigo?
O jerico abatia um pouco as orelhas, inclinava o pesco?o, parece que fazendo-se humilde...
--Ent?o se és, anda daí. Olha...--E mostrava um pedacito de p?o.--P'ra ti se vieres...
O ?Sult?o? dava três passos, e ficava fora do cortelho. E por se vingar, o Tomé carregava o semblante numa seriedade muito pesada, e erguendo o rosto iracundo chamava-lhe
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