Os meus amores | Page 6

Trinidade Coelho
interesseiro, maroto, afirmando que já lhe n?o dava o p?o. E desfechando-lhe enfim a amea?a de o vender a um cigano, entrava a tratá-lo por senhor--s?r ?Sult?o?...
Mas o pequeno jumento ia andando muito devagar... andando... orelhas baixas, pesco?o caído, a modo de arrependido, parece que pedindo perd?o da arrelia.
Nervoso, sapateando, o Tomé voltava a cara para a outra banda, a rir como um perdido.
--Diabo do jerico! diabo do rat?o! Capaz é ele de fazer rir as pedras, o mariola!--E tossia de engasgado, uma migalhita de queijo na goela.
No entanto, o ?Sult?o? ia avan?ando, muito ronceiro, até que tocava com o focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O Tomé sacudia-o:
--Sai-te p'ra lá! dizia ele muito amuado, sem se voltar.--Cuidas talvez que te n?o conhe?o, cuidas? Já te n?o quero, vai-te!
Mas como que irreflectidamente, fingindo n?o querer, chegava-lhe ao focinho um pedacito do p?o, o melhor da fatia. ?Sult?o? lan?ava um olhar oblíquo, entre sorrateiro e medroso, levantava cautelosamente o bei?o superior, a tremer, e roubava-lho da m?o.
Pazes feitas! Era ent?o rir a perder, numas casquinadas agudas, muito estrídulas.
--Credo, homem! dizia de cima, da janela, a Sr.^a Josefa.--Até pareces doido!
--Você assim rouba seu dono? Diga! Você assim rouba seu dono? perguntava o Tomé, nuns grandes gestos.--Vamos que eu lhe n?o queria dar da merenda? Ladr?o, de mais a mais!... Ora bem! agora brinque.
Era precisamente o que o Tomé queria:--ver o ?Sult?o? a brincar.
...Nada, com efeito, meus amigos, que mais divertisse o bom do lavrador, e melhor o indemnizasse daquelas fainas laboriosas que lhe consumiam os dias, imperturbavelmente, perpetuamente, sob sóis causticantes e chuvas torrenciais.
Por isso, era de ver como ele ria, com uma boa vontade deliciosa, das ?partidas? e ?diabruras? do ?Sult?o?! às vezes, o pequeno jumento, ferido n?o sei por que vespa invisível, despedia sem mais nem menos numa carreira aberta, focinho entre as pernas dianteiras, agitando a cauda, por aquela rua fora. Rompia de toda a banda num alarido o rancho pacífico das galinhas, que já no ar andavam como doidas, cacarejando, como se um pé de vento as levasse. Acudia gente aos postigos, às portas, às janelas, a ver a polvorosa; e súbito se inundava a rua de rapazes, rotos, descal?os, alguns quase nus, correndo atrás do burro, gritando-lhe, acenando-lhe, espantando-o--como se o mesmo vento de folia os houvesse varrido a todos, varrendo a própria rua... E um lá ia a terra, e sobre esse passavam os outros, e sobre todos voava o ?Sult?o?, apupado, perseguido, aclamado, na malta espavorida dos inimigos...
--?Sult?o?! eh lá! ?Sult?o?!
Súbito, como se lhe estalasse a corda, o animal estacava, e logo de volta dele postava-se a rapaziada, mas num alor de nova fuga, n?o lhe desse na bolha atacá-los... E abriam alas de repente, quando ele, tomado de novo acesso, voava para as bandas do dono, que por se n?o deixar atropelar investia com o ?Sult?o? de bra?os abertos, o que era, já se vê, um modo de o abra?ar, fingindo medo. E vinham as gargalhadas estrídulas, os rogos para que pusesse tréguas, as súplicas para que se acomodasse, recuando o lavrador até ao último degrau da escada, onde se deixava cair,--derrotado!
--P'ra lá, ?Sult?o?! p'ra lá! fazia ent?o o Tomé, opondo-lhe os pés, desviando-o, apoiando-se nos cotovelos, muito inclinado para trás, a rir como um perdido.
Ent?o o pequeno jumento estacava, ofegante. Mas prestes rompia a girandola dos coices, em que era exímio, sacudindo muito as patas, cauda no ar, muito direita, ao mesmo tempo que o Tomé solícito dava aos rapazes o aviso de se arredarem--?porque era doido, aquele demónio?!...
Outras vezes, parece que variando de táctica, entrava de seguir muito cauteloso, num ronceirismo pérfido, como um borrego ou como um c?o, certa mulher que passava. Até que lá ia uma focinhada, e logo após os saltos do costume, respondendo com uma amea?a de pinotes à surpresa da viandante.
--Dê, tia Luísa! bata nesse maroto! fazia de lá o Tomé, com ares de zangado. E depois, batendo o pé, pedindo que lhe dessem uma verdasca:--?Sult?o?! venha já p'r'aqui! intimava.
E se encontrava um c?o? Se encontrava um c?o, ia logo direito a ele, muito devagar, cauda caída, orelhas murchas, num cumprimento humilde de focinho. O c?o regougava, desconfiado, entreabrindo a dentu?a, preparando a sua dentada. N?o dava o ?Sult?o? sinais de medo, e humilde prosseguia para o outro, propondo paz. Mas ao primeiro latido, recuava um passo, espertando da sua indolência passiva; e de espinha arqueada ganhava o terreno perdido--fitando impassível o c?o... O bruto formava ent?o o salto, regougando forte, o pêlo eri?ado; e ao investir para a primeira dentada, salvava-o de um pulo o ?Sult?o?, evitando-o, até que por compaix?o lhe dava um pequenino coice, ?mais feitio que outra coisa?, pondo em fuga o mastim, corrido, ganindo, vencido:
--Eh! valente! gritava-lhe ent?o o Tomé.
E com duas palmadas na anca, espantava-o enfim para o cortelho, dizendo ao
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