mais constantes, desapparecêra, e elles
olhavam-se assustados, meio loucos, como se de subito se lhes tivesse
apagado a luz que os alumiava; sentiam a indecisão do homem, a quem
no meio da estrada fulmina inesperada cegueira.
Passada a violencia da primeira dôr, em todos ficou a saudade, negra e
concentrada em D. Luiz, melancolica em Jorge, expansiva e vehemente
em Mauricio; e para todos o nome de Beatriz, a recordação dos seus
gestos, das suas palavras, era um talisman, cuja efficacia nunca se
desmentia. A alma d'aquelle anjo assistia ainda á familia, que o chorava,
e á sua mysteriosa direcção obedeciam todos, sem o perceberem.
Morta aos dezeseis annos, Beatriz vivia ainda nos logares que habitava.
Ha entes assim, cuja influencia posthuma lhes dá uma quasi
immortalidade, á maneira da luz sideral, que continua a scintillar para
nós, depois de aniquilado o fóco que a emittia.
O padre Januario tornou-se desde então a creatura indispensavel, e a
companhia exclusiva de D. Luiz, que via n'elle o unico representante da
sua antiga côrte.
Acerrimo partidario do regimen absoluto, apesar de lhe não ser possivel
enfeixar dois argumentos serios em defeza d'elle, o padre Januario
passava a vida aproveitando os mais ridiculos ensejos para premissas
dos seus corollarios anti-liberaes, artificio com que lisongeava as
paixões do seu illustre amo e patrono, e mantinha n'elle o fogo sagrado.
O padre achava-se bem n'aquella vida monotona, que exercia sobre si
os mais notaveis effeitos analepticos. Podia dizer-se que elle dividia alli
o tempo entre duas occupações exclusivas: comer e esperar com
impaciencia as horas da comida.
Uma unica circumstancia assombrava os dias do padre. Era a presença
na Casa Mourisca do hortelão, em quem fallamos, e que mantinha com
elle uma aberta hostilidade. Frei Januario exasperava-se sempre que o
ouvia fallar no Imperador e no Cerco e nos Voluntarios da Rainha e na
Carta, com o enthusiasmo e a emphase de um soldado d'aquelles
tempos. Por vezes rompiam ambos em scenas violentas; por vezes o
capellão ia aconselhar ao fidalgo a demissão d'aquelle homem, que
ameaçava infectar de liberalismo a familia inteira.
D. Luiz porém, apesar de nunca fallar com o hortelão, não attendia
n'estas reclamações o padre. Conservando no seu serviço o veterano,
satisfazia a um pedido da esposa, e não teria coragem para fazer o
contrario. Assim perpetuavam-se os conflictos entre os dois, porque
nem o procurador supportava as rudes franquezas do soldado, nem este
os remoques encapotados do procurador.
Tal era a situação da familia da Casa Mourisca na época em que vae
procural-a a nossa narração.
Já se vê quão mal assegurado andava o futuro dos dois jovens filhos de
D. Luiz. A educação que elles haviam recebido não tendêra a fim
algum prático.
D. Luiz não podia soffrer a ideia de dar a seus filhos uma profissão. A
nobre carreira das armas, que mais lhes conviria, estava-lhes fechada
pelas ultimas evoluções politicas. Os descendentes dos
ultra-monarchicos Negrões de Villar de Corvos não eram para se
assalariarem em defeza dos principios e das instituições que abalaram
os velhos thronos, firmados no direito divino. Nobre era tambem a
carreira ecclesiastica, que muitos dos seus antepassados haviam
trilhado, apoiados no baculo episcopal; mas se D. Luiz estava
persuadido de que já não havia religião n'este territorio de antigos
crentes? e se frei Januario teimava, ensinado pelo mallogro de longas
pretenções ás honras de umas meias vermelhas, que só se adiantava nas
phalanges do clero quem fosse pedreiro livre!
Assim pois os jovens descendentes do velho realista passavam o tempo
cavalgando e caçando nas immediações, e fruindo em sancto ocio uma
vida, cujos espinhos todos procuravam occultar-lhes. Caminhavam por
estrada de rosas para um fundo precipicio, d'onde lhes desviavam as
vistas.
Deve porém dizer-se que não caminhavam ambos igualmente
desprevenidos; porque de criança era diverso o caracter dos dois, e de
dia para dia mais a differença se pronunciava.
Jorge, na infancia como na juventude, fôra sempre grave e reflectido.
Nos brinquedos tomava para si o desempenho de um papel serio. Era o
pae, o mestre, o commandante, o medico, o padre, tudo aquillo que o
obrigasse a um porte sisudo e a uma gravidade de homem. Adolescente,
nunca as raparigas do logar lhe ouviram uma phrase atrevida; era
sempre uma saudação affectuosa, casta e quasi paternal a que lhes
dirigia, ainda quando as encontrasse a sós nas veredas mais solitarias
das devezas ou pinheiraes. Ellas habituaram-se áquella juvenil
seriedade, saudavam-n'o como a um velho, fallavam d'elle com
acatamento, certas de encontrarem n'aquelle silencioso rapaz um
protector na occasião precisa, mas nunca um namorado. E comtudo a
figura esbelta de Jorge, a varonil e intelligente expressão d'aquelle rosto
bem desenhado e um certo fulgor no olhar, que denunciava energia de
caracter, obrigavam a desviar-se para o vêr mais de um olhar feminino,
quando elle passava
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