Os fidalgos da Casa Mourisca | Page 6

Júlio Dinis
com um livro debaixo do braço ou a cavallo pelos
caminhos do campo.
As pessoas da indole de Jorge impoem uma especie de estranho temor
ás mulheres, que se afastam d'ellas como de um ser mysterioso, d'onde
lhes podem vir perigos desconhecidos.

Mauricio, pelo contrario, mal podia dizer de que idade encetára o seu
primeiro amor. Com os brinquedos pueris misturára já uns arremedos
de galanteio e mais o competente cortejo de arrufos e de ciumes. Desde
então nunca lhe andou o coração devoluto, ainda que tambem nunca tão
tomado e absorvido por amores, que o fizesse passar por qualquer
belleza feminina, sem uma lisonja e sem um sorriso.
Era popularissimo entre as raparigas da aldeia; todas o conheciam, e
elle a todas designava por os nomes. A todas não, que para as feias
tinha uma memoria ingrata.
Além d'isso Jorge gastava muito do seu tempo na leitura. Era bem
provida a livraria da casa. A educação esmerada da mãe e bom gosto
litterario tinham enriquecido a bibliotheca dos melhores modelos da
litteratura nacional e da estrangeira. Ahi encontraram os dois rapazes
farto alimento para a sua curiosidade. Jorge lia tambem furtivamente os
poucos livros, espolio do tio fallecido, os quaes o hortelão guardára
como reliquia, furtando-os ao auto de fé a que os condemnaria
inevitavelmente a indignação do fidalgo e do padre. N'esses livros
aprendeu Jorge a pensar, a comprehender o alcance de certas ideias e de
certas instituições, e a fazer a justiça devida a muitos preconceitos, que
lhe haviam imposto como dogmas.
A um espirito d'estes, educado em observar e reflectir, não podiam
passar por muito tempo desapercebidos os numerosos symptomas da
decadencia que apresentava a Casa Mourisca. Assim, por vezes
vinha-lhe ao espirito uma secreta apprehensão pelo seu precario futuro.
Mauricio, imaginação mais forte, natureza mais ardente, caracter mais
frivolo e voluvel, vivia a sua vida de joven fidalgo de provincia;
deixava-se ir na corrente dos seus amores faceis, dos seus prazeres e
das suas dissipações, allucinado por os sonhos e chimeras de uma fertil
fantasia, e não profundava os olhos até o seio obscuro das realidades. A
sua leitura era exclusiva de romancistas e poetas. Imaginação
nimiamente inquieta, razão por indolencia inactiva, não via, nem
quereria vêr, o espectro, que ás vezes apparecia aos olhos do irmão.
Uma circumstancia havia, a que mais que a outras devia Jorge a

apparição d'esse espectro, que, á semelhança da sombra do rei da
Dinamarca, em Hamlet, ia exercendo uma funda influencia no animo
do adolescente.
Esta circumstancia não era só para elle manifesta. Ao viajante, que já
suppozemos parado a contemplar o vulto denegrido da Casa Mourisca,
não passaria ella tambem desapercebida.
Na raiz da collina fronteira áquella, onde o solar dos fidalgos erguia as
suas torres ameiadas, assentava o mais risonho e prospero casal dos
arredores. Era uma completa casa rustica, conhecida por aquelles sitios
pelo nome, que por excellencia se lhe dera, da Herdade.
O contraste entre a Herdade e o velho solar era perfeito.
Ella graciosa e alvejante, elle severo e sombrio; de um lado todos os
signaes de actualidade, de vida, de trabalho, da industria que tudo
aproveita, que não dorme, que não descança; a economia, a previdencia,
o futuro: do outro, o passado, a tradição esteril, o silencio, a incuria, o
desperdicio, a ruina: a cada pedra que o tempo derrubava do palacio,
correspondia uma que se assentava na Herdade para alicerces de novas
construcções; aqui desmoronava-se um pavilhão, alli levantava-se um
celleiro, uma azenha, um lagar; aos velhos carvalhos, ás heras
vigorosas, aos avelludados musgos, aos lichens multicores, severas
galas, com que se adornava a casa nobre, oppunha a Herdade os
pomares productivos, as ondulantes searas, os prados verdes, as vinhas
ferteis e proximo de casa, os canteiros de rosas e balsaminas, onde
volteavam incessantes as abelhas das colmeias proximas. Nas amplas
cavallariças do palacio, onde outr'ora relinchavam duzias de cavallos
das mais apuradas raças, ainda batiam com impaciencia no lagedo dois
velhos exemplares de bom sangue, cujo sacrificio a economia não
exigira ainda; nas mais modestas cavallariças do casal, duas eguas
robustas, promptas para o serviço, e domaveis por uma criança,
preparavam-se em fartas mangedouras para frequentes e longas
excursões; e ao entardecer abriam-se os curraes a numerosas cabeças de
gado, cujos mugidos chegavam até o alto da Casa Mourisca, onde o
velho fidalgo muita vez os escutava, pensativo e melancolico.

Este contraste, que apontamos, era a circumstancia que evocava no
espirito de Jorge o espectro que o entristecia.
O dono da Herdade fôra pobre, servira como criado na casa dos
fidalgos, passára depois a rendeiro de um pequeno casal, mais tarde
arrendára uma fazenda maior; chegando emfim a ser proprietario,
tornára-se em pouco tempo possuidor de extensos bens, e era já o chefe
d'uma familia numerosa e talvez o primeiro agricultor d'aquelle circulo.
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