Os fidalgos da Casa Mourisca | Page 4

Júlio Dinis
fome, da peste e da guerra, triplice calamidade que conhecêra
de perto, das batalhas em que havia entrado, da bravura do seu amo, e
finalmente do Imperador, por quem o mutilado veterano professava um
enthusiasmo quasi supersticioso, e a cujo vulto a sua narrativa
imaginosa dava um aspecto epico e sobrenatural.
As crianças não se fartavam de interrogar aquella testemunha

presencial de tantos feitos heroicos.
E assim eram neutralisadas as doutrinas dos pedagogos eruditos,
encarregados da educação dos filhos de D. Luiz, e estes iam crescendo
affeiçoados aos principios liberaes, que amavam de instincto, antes de
os amarem de reflexão.
Mas dias de maior provação estavam reservados para esta familia.
A munificencia que o senhor da Casa Mourisca mantivera no
voluntario desterro, a que se condemnou, obrigára-o a enormes e
perigosos sacrificios.
D. Luiz nunca propriamente se occupára da gerencia dos seus bens. Fiel
aos habitos aristocraticos dos seus maiores, deixára desde muito a
procuradores todos os cuidados de administração, e de quando em
quando recebia d'elles a noticia de que a sua casa se estava perdendo,
sem que se lembrasse de perguntar a si proprio se não seria possivel
oppôr um obstaculo áquella ruina.
O padre Januario, ou frei Januario dos Anjos, velho egresso, homem de
letras gordas, que se estabelecêra commodamente n'aquella acastellada
residencia, como em casa sua, era um d'esses procuradores.
Faça-se justiça ao padre, que não era de má fé, nem em proveito
proprio, que elle apressava, com mão poderosa, a decadencia de D.
Luiz. Mas, homem de curtas faculdades e de nenhum expediente
financeiro, se obtinha capitaes para o seu constituinte, nas crises mais
apertadas, era sempre sob condições de tal natureza, que deixava de
cada vez mais onerada a propriedade e mais irremediavel o triste futuro
d'ella. Succedeu pois o que era de esperar. Dispersou-se a côrte de D.
Luiz. Por muito que fizessem os administradores da casa para a manter
no costumado esplendor, cêdo principiaram a transparecer os signaes
da declinação. Foi o aviso para a debandada. Uns porque delicadamente
comprehenderam que a sua permanencia concorreria para augmentar as
difficuldades, com que o fidalgo já luctava; outros, porque aspiravam
melhores auras, longe d'alli, em solares menos estremecidos pelo
vaivem da adversidade; é certo que todos se foram retirando, a um por

um, e deixaram a familia só.
Augmentou com este isolamento a taciturnidade do fidalgo.
Depois veio a doença e a morte da esposa, d'aquella que lhe tinha sido
tão fiel amiga, que, para lhe poupar desgostos, até escondia as lagrimas,
que elle lhe fazia verter; veio essa nova dôr atribular-lhe ainda mais a
existencia. E ainda não haviam acabado as provações! No fundo do
calice estavam ainda depositadas as gotas mais amargas.
D. Luiz tinha por esses tempos uma filha, mimoso legado da esposa,
cuja missão consoladora continuava no mundo. Queria-lhe muito o pae!
Se não havia de querer! O coração árido d'aquelle velho e o tenro
coração d'aquella criança procuravam-se, como para um pelo outro se
completarem.
O velho fidalgo, concentrado e quasi rispido para com os outros filhos,
se alguma vez teve nos labios sorrisos desanuviados e sinceros, foi na
presença da sua Beatriz. Aquelle desgraçado coração, vazio de affectos,
queimado de odios e de paixões esterilisadoras, sentia um grato
refrigerio em deixar-se penetrar do suave influxo das caricias da
criança, que beijava as faces rugosas do pae e lhe brincava com os
cabellos prateados; e muitas vezes, n'esses momentos, lagrimas de
desafogo dissipavam a cerração que ia na alma d'aquelle homem, que
com tanta força sabia odiar.
E não era só o pae que experimentava essa influencia.
Jorge, que de pequeno fôra pensativo e serio, sentia-se tomar por a
bondade e ternura de Beatriz. Criança ainda, tinha ella, quando a sós
com o irmão, um olhar penetrante e um gesto grave como o d'elle, um
espirito para communicar á vontade com o seu. Ella parecia
comprehender o alcance do auxilio que poderia receber um dia
d'aquelle rapaz sisudo, que a fitava, e elle sentia-se engrandecer aos
proprios olhos, lembrando-se de que seria sua missão na vida proteger
aquelle anjo.
Mauricio, genio mais impetuoso e impaciente, dobrava tambem a

vontade a um aceno da fragil e delicada creatura, em quem um
estouvamento seu desafiava lagrimas. E estas lagrimas eram a unica
repressão que o continham nos desvarios.
Pois até n'esta filha feriu o Senhor o pobre ancião.
Criança mimosa, colheu-a um sopro da morte, ainda com o sorriso nos
labios, e prostrou-a exanime no tumulo.
Fez-se então devéras escuro no espirito do pae.
Quando aquella pequena fada domestica desappareceu, como uma
visão vaporosa em contos de magia, foi como que se todos ficassem em
trevas. A vida era tão outra! O ente que absorvia os instantes d'aquelles
tres homens, a quem todos tres tributavam os seus mais puros affectos e
os seus pensamentos
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