atordoada em lava,?Lagrimeja apenas d'uma rocha cava?Pranto, que o bebera uma ovelhinha só!
E por essas fulvas, ingremes ladeiras?Pastoreava o gado, quasi morto já:?Só rochedos tristes, nus como caveiras,?E zambulhos, zimbros, tojos, cornalheiras,?Acres como pragas d'uma boca má!
E depois as torvas, negras invernadas,?Noites formidandas, lobos a ulular,?Desmoronamentos, temporaes, nevadas,?Carcav?es abertos pelas enxurradas,?Troncos de sobreiros de raiz ao ar!...
Oh, as noites tristes, alapado e quedo,?N'um covil de feras, ou algar deserto!...?E dormia ao lume sem temor, sem medo,?Pois Nossa Senhora, Virgem do Degredo,?Na ermidinha branca lhe ficava perto...
Mas no mez de Mar?o pincaros maninhos,?Montes cenobitas, d'ossos e burel,?Vestem-se de trevos e de rosmaninhos,?Com sorrisos d'oiro que alvoro?am ninhos,?E distilam favos de inocencia e mel!...
Era ent?o alegre como o sol nascente,?Mais feliz nos campos do que Deos no altar!?Anhos e cabritos, leite rescendente,?Pastos t?o mimosos, que quizera a gente?Transformar-se em ave para os n?o calcar!
Tanto Abril florido, tanta calma adusta,?Tantas inverneiras, sem pesar ou dor,?Tinham-lhe gravado na express?o robusta?Como que uma sombra de grandeza augusta,?Junta a uma inocencia matinal de flor.
Que importavam gelos, ventanias, feras??Peito nu, aberto; constru??o de touro!?Quasi me admirava que nas primaveras?D'esse peito rude n?o brotassem heras,?Margaridas, lirios com abelhas d'ouro!
Ao relento a cama no orvalhado pasto,?Cerca dos carneiros e dos bons lebreus;?Que divino leito primitivo e casto,?Todo embalsamado de serpol, mentrasto,?Sob a paz imensa do perd?o de Deos!...
E esse gigantesco latag?o corado?Era, como os santos ermit?es, frugal:?Duas azeitonas, queijo do seu gado,?E de rala escura meio p?o migado?N'um caldeiro d'agoa com azeite e sal.
N?o jantava morte, assassinato, dores,?Hecatombes tristes que jantamos nós;?E por isso ria como riem flores,?Atrahindo em bandos aves de mil cores,?Feiticeiro simples, com o olhar e a voz!...
Sua rude frauta de pastor ouvindo?Na misteriosa luz crepuscular,?Iam-se as estrellas uma a uma abrindo,?E desabrochava pelo azul infindo?Solu?ante a lua como um nenufar!...
Que trinados vivos, d'argentino encanto?Ai, missa do galo, lhe inspiravas tu,?N'essa frauta, quando de cajado e manto?Ia deitar loas ao menino santo?No altar-mór da egreja sorridente e nu!
F?ra lá crean?a, magica ventura!?Centenario quasi a derradeira vez...?E gorgeava a frauta com egual candura,?Pois a alma virgem, luminosa e pura,?Conservara-a sempre como Deos a fez.
N'ella penetrava, n'ella se embebia?Tudo que é inocencia, riso, amor, clar?o:?Fremito de pomba, voz de cotovia,?Canticos dos montes ao nascer do dia,?Lagrimas dos astros pela escurid?o!...
Longe dos Pecados de raivosas presas,?Belzebuths famintos d'olhos de metal,?Longe das horriveis tenta??es acezas?No torpor dos leitos, na embriaguez das mezas,?Pululantes larvas, vibri?es do Mal,
O pastor ditoso envelheceu ridente?Por despenhadeiros, alcantis, calvarios,?E na fronte augusta de ermit?o, de crente,?Lhe geavam anos luminosamente,?Como as pombas brancas sobre os campanarios!
Das ovelhas meigas,--intimas heran?as!--?Recolhera toda a abnega??o christ?:?Oh, sejaes bemditas, ovelhinhas mansas,?Que com vosso leite sustentaes crean?as,?E vestis os pobres com a vossa l?!
Aos noventa anos, festival, risonho,?Alamo gigante d'agoa viva ao pé;?Sim! inda na boca risos de medronho,?E nos olhos lentos, a tremer em sonho,?Dois miosotis virgens de candura e fé!
Com seu manto branco de burel grosseiro,?Cans de puro arminho, baculo na m?o,?Alembrava um santo feito pegureiro,?Que eu desejaria sobre o altar cruzeiro?D'uma ogiva d'astros, em adora??o!
Centenario quasi, recordava aspectos?De lendario tronco n'um feliz vergel,?Moribundo em meio de seus verdes netos,?Com a Providencia a agasalhal-o em fetos,?Com abelhas d'ouro inda a nutril-o a mel,
E que surdo á voz dos ledos passarinhos,?E que cego ao ether de esplendor ideal,?Com o ai extremo lan?a dois raminhos,?A chamar ainda por can??es de ninhos?E a dizer aos astros um adeos final!
Tal o pastor santo, já de vez cahido,?Já corcovadinho, flebil, quasi morto,?Arrimado ao velho baculo torcido,?Nada ouvindo, nada, com o duro ouvido,?Vagamente olhando com o olhar absorto,
Ia pelos montes na tristeza infinda?D'um cora??o ermo, com a morte aceite,?A pedir aos anjos para ouvir ainda?Badalar ovelhas n'uma noite linda,?Quando a lua os campos alagasse em leite!...
Seu bisav? fora guardador de gado,?Guardador de gado seu av?, seu pae;?Creou filho e netos como foi creado,?E morreu ditoso porque o seu cajado?Seu rebanho ainda pastoreando vae!
Candido, na paz das solid?es dormentes,?Ignorando o mundo rancoroso e vil?Aos cem anos inda, com a fé dos crentes,?Punha olhos claros, simples, inocentes,?Na estrellinha d'alva das manh?s d'Abril!
Levará no esquife para os ceos a palma?Da grandeza mansa, da virtude austera.?Realisou no mundo a perfei??o da Alma:?Porque foi bondoso como a lua é calma,?Porque foi um santo sem saber que o era!...
Vós, ó semideuses do entremez da Gloria,?Cesares, tiranos, capit?es, heroes,?Epicas figuras de imortal memoria,?Que de serro em serro iluminaes a historia?Como crepitantes, tragicos faroes,
Na regi?o do Imenso, no Infinito puro,?Onde me deslumbra, como um sol, Jesus,?N?o sois mais que larvas a tremer no escuro,?Que ninguem conhece, que eu em v?o procuro?Com meus olhos calmos n'esse mar de luz!
E o pastor d'ovelhas, que comeu centeio,?Que viveu nos montes, que dormiu nas grutas,?T?o asselvajado, cabeludo e feio,?Que dissereis quasi que esse monstro veio?Da matriz da terra, como as pedras brutas,
Já liberto agora da Ilus?o do mundo?Fez-se em anjo branco, inda outra vez pastor:?Milh?es d'astros seguem seu
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