Os Bravos do Mindello | Page 7

Faustina da Fonseca
assassino profissional:
passavam-lhe no olhar relampagos sinistros; arregaçavam-se-lhe os
beiços, mostrando os dentes pôdres ainda promptos a morder;
crispava-se-lhe a mão esquerda em fórma de garra, o pollegar muito
desenvolvido, erguido acima dos outros dedos, na ameaça de premir a
guela do inimigo; e na mão direita brilhava-lhe uma faca de meza,
brandida com furôr, como nos assaltos á arma branca, em que, com as
mãos a escorrer em sangue, degolava soldados agarrados ás peças,
apertados uns contra os outros, sem espaço para se defenderem no
recanto de uma trincheira. Tinham ás vezes que abrir-lhe a mão á força
para lhe tirarem a podôa de jardineiro, a que se soldavam os dedos
quando brigava com os cavadores, e renovava-se a lição do mal; ou
quando o vinho lhe obliterava a consciencia de homem grato, generoso,
humilde até á servidão.
Sobresaltado frei Angelico na languidez da digestão, arrotando
empanturrado, flatulento, ergueu-se, arredou o habito pardo de
franciscano n'um meneio feminil, adquirido em menino do côro; o que
ainda parecia, apezar dos quarenta annos, pelo effeminado dos
ademanes de aprendiz de clerigo, pelo tom rosado da face gorda e
oleosa, a que a larga tonsura dava uma frescura de novo; e
desapertando o cordão de nós, clamou na voz de canna rachada, em que
outr'ora cantava de falsete, limpando o suor ao lenço de Alcobaça sujo
de rapé:
--Veja e aprenda, Joãosinho, como se pratíca a verdadeira egualdade,
não a d'esses malditos clubs, mas a que é agradavel ao ceu! Aprenda,
que está em edade. N'esta velha casa fidalga fraternisam, libando o
vinho de Deus, dando graças ao Altissimo pelas suas obras, a nobreza
representada no excellentissimo senhor Martinho Vasques de Linhares
Soeiro, morgado dos Folhadaes, o clero n'este humilde servo do Senhor,
e o povo n'esse villão, esse ninguem, esse bicho da terra, esse pó da
estrada!--e apontava mestre Jacintho.--Exemplos d'estes, só na

educação religiosa se encontram. E para isto não é preciso ser jacobino,
nem republicano, nem pedreiro livre, nem cuspir na hostia consagrada!
Benzeu-se horrorisado e, sem transição, desceu do tom de prégador:
--Mas o Joãosinho não bebeu nada. Vá lá. Um só não faz mal.
Encheu-lhe um copo, derramando vinho pela toalha, e deitou outro para
si.
--Beba á saude do senhor morgado, e vamos para o terraço, que se
abafa de calôr.
Habituado áquellas scenas, bebeu satisfeito João. Talvez lhe désse o
vinho o animo preciso.
Saíram, o morgado á frente, equilibrando-se ao bordão de marmeleiro
polido, no apparato de uma vara de juiz, em gravidade processional;
depois o frade, arrastando as sandalias, conchegando a proeminente
barriga, levando no regaço o cordão e o rosario, que desapertara; João
pisando respeitoso, ao de leve; e por fim o mestre Jacintho, muito
curvado, rindo e falando comsigo mesmo.
Assentaram-se a nobreza e o clero na banqueta de azulejo, que corria ao
longo da empêna da casa, no terraço voltado para S. Matheus.
Sentou-se João sem esperar convite, por direito proprio,
considerando-se tanto ou quanto nobre, pelos fóros de fidalguia da
espada do avô; e n'essa decisão já reconhecia o effeito do vinho
fazendo-lhe perder a usual timidez, e já acariciava a proxima entrevista
com Maria. Disciplinado como soldado, e tão firme quanto lhe era
possivel, conservava-se mestre Jacintho de pé ante os seus superiores
hierarchicos, chalaceando, contando historias de caserna, as mãos perto
dos ouvidos, o rosto expandindo-se n'um sorriso de bom velhote.
Depois saíu Martinho Vasques com o jardineiro, a vêrem os trabalhos
da quinta, e frei Angelico e João foram para o escriptorio.
Dobrado para a meza de saia de baeta vermelha, limpando no cabello a

penna de pato, olhava a furto, pela janella fronteira, a varanda de pedra
do fundo da quinta, onde passeavam á sombra da parreira, Maria, a
prima que ia jantar com ella e passar a tarde, e Jorge da Feteira,
namorado de D. Josepha da Esperança, que apparecia para a merenda.
Tinha ciumes do fidalgote que levava a confiança de primo a beijar
Maria á entrada e á saída, e invejava-lhe a liberdade em que andava
com as duas raparigas ao fresco da tarde, pela recatada vastidão do
pomar.
Afastavam-se, mas elle espionava o quadro recortado pela janella na
parede nua, e tornava a vêl-os notando a impaciencia com que o
observavam.
Orgulhava-o esse interesse. Sabia que o estimavam, que o esperavam
para a merenda, mas não deixava de reconhecer, por parte dos primos
reunidos para falarem, o motivo d'essa espectativa, poderem afastar-se
deixando Maria entretida com elle.
Deitado em cima da papeleira encetára o frade diversas folhas de papel,
mas a penna de pato, rangendo muito, fazia-lhe uma lettra incerta,
incomprehensivel, e a mão tremula deixava cair borrões que
impossibilitavam a continuação. Deitava-lhe areia, encanudava a folha
e despejava-a no recipiente de chumbo, mas os pingos de tinta lá
ficavam. E na atarantação
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