_e da
conquista, navegação e commercio da Ethiopia_, etc., que D. Manuel
accrescentava ao dictado de senhor de Guiné, que D. João para si
tomara, eram a expressão mais simples e mais exacta da idêa
commercial e monarchica, isto é, de que o commercio obtido por meio
das conquistas e navegações pertencia ao senhorio real, e a historia dos
ciumes de D. João II e do seu successor sobre os novos descobrimentos
confirma a nossa opinião. Assim o estado se confundia ou, antes, se
incorporava na corôa, e se constituiam essas formas politicas dos
reinados seguintes que resumbram em toda a legislação posterior, e a
que, talvez, possamos chamar meio termo entre o absolutismo e o
despotismo, como a organisação social portugueza antes das côrtes de
1481 se póde também considerar como um meio termo entre o
absolutismo e a monarchia representativa.
Substituida, portanto, a agricultura, que era do povo, pelo commercio
exclusivo, que era da corôa, e extinctas as tradições feudaes na nova
compilação Manuelina, a idade media morrera, com o seu systema de
luctas e resistencias, e começara esse seculo XVI, cujo caracter
essencial em politica foi a unidade monarchica. Este phenomeno
explica o novo aspecto que tomou a historia e o apparecimento de uma
litteratura cortezan e paceira, que visivelmente se distingue nos poetas
mais modernos do cancioneiro, nas obras latinas que por esse tempo
appareceram, principalmente nas de Cataldo Siculo, e nos autos do
Aristophanes portuguez Gil-Vicente, compostos para alegrar as horas
de tedio nos paços de D. Manuel. A chronica tomou logo o sabor do
elogio historico, e Garcia de Rezende, velho cortezão, escreveu a vida
de D. João II debaixo dos tectos dos sumptuosos paços da Ribeira. A
este pobre homem não cabe, todavia, a gloria da invenção d'aquelle
genero historico: Ruy de Pina foi o seu inventor. A Chronica de D.
João II escripta por este foi o modelo ou, antes, o original da de Garcia
de Rezende, que apenas lhe accrescentou alguns dictos e feitos do seu
heroe, algumas anecdotas desenxabidas e triviaes de antecamara, em
que não esqueceram as acontecidas com o proprio auctor. Garcia de
Rezende não fez senão aperfeiçoar a chronica individual e tornal-a,
ainda mais que Ruy de Pina, uma biographia real. E que outra fórma
podia ter a historia n'uma epocha em que a organisação social tinha
sumido o povo, a nobreza, e ainda o clero, debaixo do throno do
monarcha?
Seria uma das comparações mais curiosas a do caracter historico da
Chronica de D. João I por Fernão Lopes com o da Chronica de D. João
II por Garcia de Rezende, se ao mesmo tempo se comparasse o estado
da sociedade portugueza no meado do seculo XV com o em que se
achava no principio do XVI. Esta comparação nos parece serviria para
explicar as formulas historicas pelas politicas, e vice-versa estas por
aquellas.
Que distancia espantosa não ha, com effeito, entre o grande poema de
Lopes e a mesquinha collecção de historietas de Garcia de Rezende,
onde apenas avultam algumas paginas com o supplicio de um nobre, o
assassinio de outro, e o mysterio de um rei que morre, ao que parece;
envenenado? Que distancia espantosa de um cadafalso, de um punhal, e
de uma taça de veneno, ao cerco de Lisboa, à batalha d'Aljubarrota, ao
baquear de Ceuta? No livro de Garcia de Rezende vê-se o aspecto triste,
e a vida de agonia, e o sorrir forçado de um rei sem familia, rodeado de
cortezãos, cujos nomes pela maior parte se resolvem em fumo com o
morrer de seu senhor, a quem seguem os ginetes de Fernão Martins, os
bésteiros e espingardeiros da guarda, não para pelejarem com estranhos,
mas para o defenderem contra os odios de seus naturaes. Ahi o vulto
real abrange quasi os horizontes do quadro, e só lá no fundo, mal
desenhadas e indistinctas, se enxergam as personagens historicas
d'aquella epocha, e as multidões agitadas ou tranquillas a um volver
d'olhos do monarcha, mas nullas tanto em um como em outro caso. Na
chronica de Fernão Lopes ha, pelo contrario, a historia de uma geração:
é um quadro immenso de muitas figuras no primeiro plano. Nos
degráus do throno de D. João I estão assentados guerreiros e sabedores,
e monges e clerigos, e povo que tumultua e brada com vóz de
gigante--patria! Ao pé da imagem homerica de Nunalvrez vê-se a
fronte serena e sancta do arcebispo de Braga, e a face meditabunda e
enrugada de João das Regras, e os vultos terriveis do Ajax portuguez
Mem Rodrigues, e do esforçadissimo Martim Vasques, e de tantos
outros cavalleiros a quem difficilmente sobrepuja o rei popular, o
Mestre de Aviz. O chronista faz-vos acompanhar as multidões quando
rugem amotinadas pelas ruas e praças; guia-vos aos campos de batalha
onde se dão e recebem
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