Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo V | Page 9

Alexandre Herculano
golpes temerosos; abre-vos as portas dos paços
ao celebrar das côrtes, ao discutir dos conselhos; arrasta-vos aos
templos onde trôa a voz do monge eloquente; lança-vos, emfim, no
existir dos tempos antigos, e embriagando-vos com o perfume da idade
media, e deslumbrando-vos com o brilho da epocha mais gloriosa da
historia d'esta nossa boa terra portugueza, evoca inteiro o passado, e
rasgando-lhe o sudario em que jaz, com o sopro do genio dá alma, e
vida, e linguagem ao que era pó, e morte, e silencio.
Em Ruy de Pina raro se encontra a historia da nação: em Garcia de
Rezende talvez nunca. Fernão Lopes e Azarara tinham escripto no
tempo de Affonso V: estes escreviam no de D. Manuel. D'ahi provém a
differença.
Em poucas palavras o pouco que se sabe da biographia de Rezende.

Ignora-se a epocha do seu nascimento; mas sabe-se que era natural de
Evora é irmão do celebre André de Rezende, o traductor de Cícero. Foi
pagem da escrevaninha de D. João II e seu predilecto. Grato por isto,
lhe escreveu a vida, a qual se imprimiu Evora em 1554.[4] Compoz
tambem uma relação da ida infanta D. Beatriz para Saboia, e outra da
viagem d'el-rei D. Manuel a Castella, e finalmente umas trovas
satyricas que intitulou Miscellanea. Colligiu em um volume as poesias
avulsas que no seu tempo tinham mais celebridade, tanto dos poetas
d'quella epocha, como de outros mais antigos. Este volume, que foi
dado á luz por elle em Lisboa em 1516 com o titulo de Cancioneiro
Geral, é hoje um dos mais raros monumentos da nossa litteratura, e o
verdadeiro titulo de gloria de Garcia de Rezende.
Em 1514 foi a Roma como secretario de embaixador Tristão da Cunha,
mandado ao papa por el-rei D. Manuel. Voltando á patria morreu em
Evora, não sabemos em que anno, e jaz no convento do Espinheiro.

CARTAS SOBRE A HISTORIA DE PORTUGAL
1842

*CARTA I*
1 d'abril de 1842.
Srs. Redactores da Revista universal lisbonense.--A reforma ha pouco
feita no seu estimado jornal; o agasalhado que n'elle se concede a tudo
quanto se chama fructo de sciencia humana; a maior extensão de
escriptura que nas suas paginas se póde hoje encerrar; e sobretudo a
ambição, que desperta nos entendimentos ainda humildes, de se
acharem á meza da sciencia em tão honrada companhia litteraria como
a dos collaboradores da Revista; tudo isso me excitou a dirigir-lhes esta
carta, que folgarei mereça a honra da publicação, e que se o merecer
será seguida por outras sobre o mesmo objecto, porque traçando e
alevantando a Revista um formoso edificio de civilisação n'esta pobre

terra de Portugal, posto que eu saiba serem as pedras que posso cortar e
carrear para o monumento toscas e mal desbastadas, sei tambem que
até estas teem sua cabida e serventia, quando para mais não sejam ao
menos para sumir lá nos alicerces e na grossura dos muros, em quanto
os artifices de primor vão aperfeiçoando as portadas, columnas,
cimalhas, remates, e mais exterioridades de desenho, em que os
architectos da obra põem as suas complacencias d'artistas.
Entendi eu, que o entreter alguns momentos os leitores da Revista com
diversos estudos sobre a nossa antiga antiga historia, não seria
fazer-lhes mau serviço. Ha n'este fallar das recordações de avós o que
quer que é saudoso e sancto, porque a historia patria é como uma
d'estas conversações d'ao pé do lar em que a familia, quando se acha só,
recorda as memorias do pae e mãe que já não são, de antepassados e
parentes que mal conheceu. Mais saboroso pasto d'espirito que esse não
ha talvez, porque em taes lembranças alarga-se o ambito dos nossos
affectos: com ellas povoamos a casa de mais entes para amarmos;
explicamos pelos caracteres e inclinações dos mortos os caracteres e
inclinações dos que vivem; os habitos actuaes pelos habitos e costumes
dos nossos velhos. Se, abastados e engrandecidos, viemos de humildes
e pobres, pretendemos muitas vezes fazer esquecer ao mundo o nosso
berço; mas no abrigo familiar, deixada tão viciosa vergonha, abrimos o
larario domestico e tiramos d'elle os deuses da meninice, grosseiros
simulacros da imagens paternas, e folgamos de os contemplar, e de
recontar ou de ouvir a sua historia, que temos recontado e ouvido mil
vezes, que todos os da casa bem sabem, mas que sempre narramos ou
escutamos com attenção e deleite, e talvez com enthusiasmo. As
recordações da terra da patria não são, porém, mais que as memorias de
uma numerosa familia.
Ha muito que para ellas voltei as minhas predilecções. E não sei, até,
quem possa deixar de o fazer em tempos como os que ora correm. Se o
rico e poderoso que nasceu dos minguados e chãos vai pedir ao passado
frescor e regalo para o espirito, como deixará o que se
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