que Gomes Eannes entrou no serviço d'el-rei
D. Affonso V, como guarda da Torre do Tombo, segundo se colhe da
carta de sua nomeação, passada a 6 de Junho de 1454; como
bibliothecario da livraria real fundada por aquelle monarcha, do que
nos informa mestre Matheus na obra citada; e como encarregado de
escrever varias chronicas das cousas portuguezas, conforme o diz o
proprio Azurara no capitulo II da Chronica do conde D. Pedro de
Menezes.
Documentos d'aquelle tempo provam D. Affonso V fizera grande
estimação de Gomes Eannes. Morava este em umas casas d'el-rei á
porta do paço de Lisboa; tinha uma tença de doze mil reaes brancos; e
fez-se-lhe mercê, em 1467, de uma capella que vagara para a corôa,
graça esta que, como observa o abbade Corrêa da Serra, era n'aquelles
tempos assaz extraordinaria. Doou-lhe, tambem, el-rei umas casas em
Lisboa, do que se acha memoria no livro 3.^o dos Misticos. Antes d'isto,
porém, Gomes Eannes era homem abastado, segundo se colhe de outros
documentos coevos.
Ácerca d'este chronista se conserva ainda uma lembrança curiosa no
Archivo da Torre do Tombo. Em 1461 uma pelliteira viuva e rica,
chamada Joanna Eannes, o adoptou por filho, constituindo-o seu
herdeiro. O já citado abbade Corrêa nota, com razão, que tal adopção
de um homem nobilitado por seus cargos e pela qualidade de cavalleiro,
feita por uma plebea, era inteiramente opposta ás idêas do seculo XV,
devendo-se por isso suspeitar que Azurara foi d'aquellas pessoas, para
quem o respeito ao dinheiro é o principal de todos os respeitos.
São incertissimas todas as datas relativas á vida de Gomes Eannes:
apenas se póde dizer que vivera pelo meado do seculo XV. A maior
parte das memorias que d'elle fallam não mencionam nem a epocha do
seu nascimento, nem a da sua morte. Algumas ha que dizem fôra
nomeado chronista em 1459: ignoramos se existe ainda a carta de tal
nomeação; mas d'isso duvidamos. O que se póde affirmar é que
Azurara acabou uma das suas chronicas (a do conde D. Pedro) em 1463,
porque elle proprio o diz. Antes d'esta compozera a da tomada de Ceuta,
que serve de terceira parte á de D. João I escripta pelo immortal Fernão
Lopes; e depois d'ella a de D. Duarte de Menezes. Estas são as tres
obras, que com certeza se podem attribuir a Azurara. Quer, todavia,
Damião de Goes que na Chronica d'el-rei D. Duarte, attribuida
vulgarmente a Ruy de Pina, e cuja melhor parte elle julga de Fernão
Lopes, houvesse tambem alguma cousa de Gomes Eannes.
Apesar da estimação e respeito que merecera Fernão Lopes aos seus
contemporaneos, parece que o seu immediato successor lhe levou n'isso
conhecida vantagem, posto que muito inferior lhe fosse em merito.
Azurara, tendo de escrever sobre cousas de Africa, passou áquellas
partes, e lá fez larga demora para conhecer miudamente os logares e
circumstancias das façanhas que tinha de narrar. Estando alli, recebeu a
celebre carta de D. Affonso V, que anda impressa no principio da
Chronica de D. Duarte de Menezes. Este documento prova quão bella
era a alma d'aquelle monarcha, a quem podemos sem receio chamar o
ultimo rei cavalheiro, e cuja honrada memoria teem pretendido
escurecer aquelles que só em seu filho encontram um grande homem.
Vê-se nesta carta que D. Affonso entendia que uma penna vale bem um
sceptro, e o engenho um throno. De irmão para irmão não houvera mais
affavel e affectuosa linguagem, e mais generosas animações e mercês.
Bem nos pêsa que não seja possivel, pela extensão d'esse documento, o
lançal-o n'este logar; não para exemplo de reis, mas de quem mais do
que elles carece de tão formosa lição, neste seculo que se diz allumiado,
e em que ha homens que em nome da patria votam miseria e fome para
àquelles que mais bem merécem.
Do merecimento litterario de Gomes Eannes de Azurara diremos em
breves palavras o que entendemos. Pode-se de algum modo comparar
ao italiano Alfieri, posto que pareça pouco exacta qualquer comparação
entre um auctor de chronicas e um poeta dramatico. E todavia muito ha
em um que do outro se possa dizer: ambos chegaram á idade viril sem
possuirem os rudimentos sequer das boas letras: nos escriptos de ambos
apparece o resultado d'esta falta de educação litteraria: ha em um e
outro certa inflexibilidade feroz e ausencia inteira d'aquellas graças de
estylo que nascem do coração amaciado desde a infancia pela
cultivação do espirito: as concepções nascem-lhes do entendimento,
como Minerva da cabeça de Jupiter, cubertas, por assim dizer, de um
arnez de ferro. Louva-se em Azurara, e de louvar talvez é, a sinceridade
bravia, com que lança em rosto aos heroes, cujas façanhas escreve, os
defeitos que tiveram, os erros e culpas em que cairam: n'isto se parece
tambem, de certo modo, com Alfieri.
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