Fernão Lopes, _por este ser já tam
velho e flaco, que per sy non podia bem servir o dicto officio_, dando-o
a outrem _por seu prazimento e por fazer a elle mercê, como é rezom
de se dar aos boõs servidores_, segundo diz a carta de nomeação de
Azurara. A epocha da morte do chronista ignora-se absolutamente; mas
sabe-se que ainda vivia em 1459, cinco annos depois de ter sido
exonerado do cargo de guarda do archivo.
Quando D. Duarte subiu ao throno (1434) deu _carrego a Fernão Lopes,
seu escripvam, de poer em caronyca as estorias dos Reys, que
antygamente em Portugal forom; e esso mesmo os grandes feytos e
altos do muy vertuoso e de grandes vertudes El-Rey seu senhor e
padre_ (D. João I), dando-lhe por isto quatorze mil libras cada anno,
mercê que foi confirmada em nome do moço principe, por influencia
do infante D. Pedro, tão sabio quanto infeliz, pae e protector das letras.
Foi, com effeito, Fernão Lopes o primeiro que poz em caronyca, isto é,
em ordem, as estorias da primeira dynastia dos reis portuguezes, e fez a
bella Chronica de D. João I. Até ahi havia apenas algumas memorias
espalhadas, alguns breves compendios dos successos publicos. N'este
numero deve entrar um manuscripto que existia em Sancta Cruz de
Coimbra, feito, segundo parece, nos fins do seculo XIV, em que mui de
leve se mencionam os acontecimentos mais notaveis dos tres primeiros
reinados, e d'elle talvez se houvessem de contar as antigas chronicas,
que Duarte Nunes reformou, ou estragou, e que muito desconfiamos
sejam as mesmas que colligiu Acenheiro no principio do seculo XVI, e
que serviram de fundamento a Ruy de Pina e Galvão: sobre tudo o que
pesam ainda muitas sombras, ao menos para nós, parecendo-nos,
todavia, indubitavel que alguma cousa havia escripta antes de Fernão
Lopes; porque a alguma cousa eram essas estorias dos antigos reis,
mencionadas na carta de nomeação de Fernão Lopes, e que n'esse
documento se distinguem claramente dos feitos de D. João I.
De quanto Fernão Lopes escreveu, o que hoje existe conhecido e
impresso é a Chronica de D. Pedro I, a de D. Fernando e a D. João I.
Comtudo, por averiguado se tem que elle escrevera as dos outros reis
anteriores, e até Damião de Goes lhe attribue uma de D. Duarte. Seja o
que for, é certo que para a gloria de Fernão Lopes são monumentos
sobejos as tres chronicas que d'elle existem.
O nosso celebre critico Francisco Dias, o homem, talvez, de mais
apurado engenho que Portugal tem tido para avaliar os meritos de
escriptores, diz que Fernão Lopes fôra o primeiro, na moderna Europa,
que dignamente escrevera a historia: com razão o diz, e poderia
accrescentar que poucos homens teem nascido historiadores como
Fernão Lopes. Se em tempos mais modernos e mais civilisados houvera
vivido e escripto, não teriamos por certo que invejar ás outras nações
nenhum dos seus historiadores. Além do primor com que trabalhou
sempre por apurar os successos politicos, Lopes adivinhou os
principios da moderna historia: a vida dos tempos de que escreveu
transmittiu-a á posteridade, e não, como outros fizeram, sómente um
esqueleto de successos politicos e de nomes celebres. Nas chronicas de
Fernão Lopes não ha só historia: ha poesia e drama: ha a edade media
com sua fé, seu enthusiasmo, seu amor de gloria. N'isto se parece com
o quasi contemporaneo chronista francez Froissart; mas em todos esses
dotes lhe leva conhecida vantagem. Com isto, e com chamar a Fernão
Lopes o Homero da grande epopea das glorias portuguezas, teremos
feito a tão illustre varão o mais cabal elogio.
II
*Gomes Eannes de Azurara*
A Fernão Lopes succedeu no cargo de guarda dos archivos Gomes
Eannes de Azurara, como dissemos no primeiro artigo, com o
consentimento d'elle, que por velho e doente de boa vontade resignou o
emprego, que tão dignamente servira. Foi Gomes Eannes filho de João
Eannes de Zurara ou de Azurara, conego de Evora e de Coimbra.
Entrou, sendo mancebo, na ordem de cavalleria de Christo, onde
chegou a ter o grau de commendador de Alcains, a qual commenda
possuia em 1454, e que depois trocou pelas do Pinheiro-grande e da
Granja de Ulmeiro, que achamos serem suas pelos annos de 1459.
Parece que durante a sua mocidade Gomes Eannes, segundo o costume
dos cavalheiros d'aquelles tempos, se occupou inteiramente no
exercicio das armas, sem curar de instruir-se nas boas letras. Verdade é
que o abbade Barbosa o faz erudito na historia desde mancebo; mas o
mestre Matheus de Pisano, seu contemporaneo, preceptor de D.
Affonso V e auctor de uma chronica da conquista de Ceuta, escripta em
latim, diz que, sendo já de idade madura, se applicàra ao estudo, mas
que até então fôra inteiramente hospede em litteratura.
Foi depois d'esta epocha
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