attendermos, agora, ás doutrinas contidas nos extractos do livro do
sr. Cárdenas, com que o auctor ampliou o capitulo VI do seu trabalho,
reconheceremos que elle se propunha estudar detidamente a divisão da
propriedade territorial, as relações das diversas classes entre si, o
serviço militar, a administração da justiça, o poder central e seus
representantes locaes; a organisação social, em summa, do nosso paíz
n'aquellas épochas remotas. Já não era, pois, um simples opusculo que
tinhamos a esperar da sua penna auctorisada: era um livro precioso, que
viria supprir, em grande parte, o V volume da Historia de Portugal, se
não no desenvolvimento e discussão erudita de todos os pontos
controvertidos ou ignorados, com certeza nos resultados finaes a que
chegara o seu longo estudo e admiravel lucidez de espirito.
Entre Fernão Lopes e fr. Antonio Brandão mediaram dois seculos.
Entre o douto cisterciense e o auctor d'este livro outros dois, e bem
medidos. Oxalá que, d'esta vez, seja mais curto o prazo, em que tenha
de apparecer o continuador idoneo dos trabalhos, que Alexandre
Herculano deixou interrompidos.
(1881).
Os editores.
HISTORIADORES PORTUGUEZES
1839--1840
I
*Fernão Lopes*
Tão raros ou tão pouco lido andam os antigos escriptores portuguezes,
que muitas pessoas ha, não de todo hospedes nas letras, que apenas de
nome os conhecem, e frequentes vezes nem de nome. Grave mal, por
certo, e mui de lamentar é tal e tão ingrato desamor áquelles que assim
lidaram em suas doutas vigilias ou para nos transmittirem as heroicas
façanhas de nossos antepassados, ou para nos doutrinarem com
virtuosos conselhos, ou para nos consolarem com um brado de poesia
de mais singelas eras, ou, finalmente, para nos herdarem sua sciencia;
que muita e boa a tiveram. Assustam os livros pesados e volumosos do
tempo passado as almas debeis da geração presente: a aspereza e
severidade do estylo e linguagem de nossos velhos escriptores offende
o paladar mimoso dos affeitos ao polido e suave dos livros francezes.
Sabemos assim quaes são os documentos em que estribam glorias
alheias: ignoramos quaes sejam os da propria, ou, se os conhecemos, é
porque estranhos nol-os apontam, viciando-os quasi sempre. Symptoma
terrivel da decadencia de uma nação é este; porque o é da decadencia
da nacionalidade, a peior de todas; porque tal symptoma só apparece no
corpo social quando este está a ponto de dissolver-se, ou quando um
despotismo ferrenho poz os homens ao livel dos brutos. Desenterra a
Allemanha do pó dos cartorios e bibliothecas seus velhos chronicons,
seus poemas dos Nibelungos e Minnesingers; os escriptores encarnam
na poesia, no drama e na novella actual as tradições populares, as
antigas glorias germanicas, e os costumes e opiniões que foram: o
mesmo fazem a Inglaterra de hoje á velha Inglaterra, e a França de hoje
á velha França: os povos do Norte saúdam o Edda e os Sagas da Irlanda,
e interrogam com religioso respeito as pedras runicas, cobertas de
musgos e sumidas no amago das selvas: todas as nações, emfim,
querem alimentar-se e viver da propria substancia. E nós?
Reimprimimos os nossos chronistas? Publicamos os nossos numerosos
ineditos? Revolvemos os archivos? Estudamos os monumentos, as leis,
os usos, as crenças, os livros, herdados de avoengos?
Não.--Vamos todos os dias ás lojas dos livreiros saber se chegou
alguma nova semsaboria de Paul de Kock; alguma exaggeração
novelleira do pseudonymo Michel Massan; algum libello antisocial de
Lamennais. Depois, corremos a derrubar monumentos, a converter em
latrinas[1] ou tabernas os logares consagrados pela historia ou pela
religião...
E, depois, se vos perguntarem: de que nação sois? respondereis:
Portuguezes!
Callae-vos; que mentis desfaçadamente.
Mas nós faremos lembrada, ao menos aqui, a nossa gloria litteraria.
Como o pae da historia nacional, como o velho Fernão Lopes,
começámos a escrever as memorias que d'elle restam moralisando
primeiro, do mesmo modo que elle moralisava antes de entrar na
materia. Não se nos leve a mal um defeito, se o é, em que já caiu o
nosso principal chronista, quando é d'elle que devemos fallar.
Escassas são as noticias que chegaram até nós ácerca de Fernão Lopes.
A epocha do seu nascimento ignora-se; mas parece que devia ser na da
gloriosa revolução de 1380, ou alguns annos antes. O abbade Barbosa e
outros dizem que fôra secretario d'el-rei D. Duarte, quando infante, e de
seu irmão D. Fernando, e cavalleiro da casa do infante D. Henrique.
Em 1418 foi encarregado por D. João I da guarda do real archivo, cargo
que até então andava unido a um emprego da fazenda publica.
Por trinta e seis annos serviu Fernão Lopes de guarda dos archivos, e de
todo este tempo existem varias certidões, passadas por elle, _das
escripturas da torre do castello da cidade de Lisboa_. Depois de tão
largo periodo foi substituido por Gomes Eannes de Azurara, que D.
Affonso V nomeou em logar de
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