Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo IX | Page 8

Alexandre Herculano
de Despreaux, quando nas suas poesias não encontrassemos já
para isso erradas opiniões acêrca do Quinault e do Tasso.
A historia da critica em França no reinado de Luís XIV e de Luís XV, e
que tambem o é com pouca differença da que vogava em Inglaterra
durante o governo de Anna, se reduz a que, se um poeta ousava
apartar-se das fórmas imaginadas nos antigos monumentos, e se este
poeta merecia a estimação publica, os criticos se viam na necessidade
ou de confessar, se não a inutilidade, ao menos a instifficiencia de seus
preceitos, ou a votar ao desprezo as producções do genero moderno. A

opção não era duvidosa; as regras sempre tinham razão; mas como ante
o tribunal da opinião era preciso que ellas apresentassem algum titulo,
ahi se corria a pedir soccorro ao homem e ao mundo, e sempre lá se
achava com que contentar o povo litterario. Aquelles preceitos que
factos oppostos não controvertiam ficavam amparados por grandes
nomes e pelo respeito dos seculos sem dar razão da sua existencia, bem
como em nossas cathedraes os conegos á sombra do culto religioso.
A justiça pede que digamos que uma grande parte dos preceitos dos
antigos foram deduzidos do principio da unidade, d'esse principio que
reside em nossa alma e que, emquanto existirmos sobre a terra,
representa para nós o absoluto, ao qual nos faz constantemente tender a
consciencia da immortalidade; mas a applicação d'este principio foi em
nosso entender muitas vezes errada ou exaggerada. Metastasio refutou
excellentemente a regra da restricta unidade de logar e de tempo nos
poemas dramaticos, e nós veremos brevemente que nem só essa
unidade carecia de fundamento: porém, a fóra das regras nascidas d'este
principio, outras ha de tal maneira futeis que para as destruir basta
negar-lhes a validade. Que razão daria Horacio, tirada da essencia do
tirania, para uma tragedia ou comedia não ter nem mais nem menos de
cinco actos? Julgamos não teria outra melhor do que uma dada
engraçadamente pelo auctor do Anno de 2440 em nota a um dos seus
dramas.[1]
Nós devemos em grande parte aos antigos o que sabemos: seria uma
ingratidão negá-lo. Elles crearam as letras e as levaram a um ponto de
esplendor admiravel; mas por as crear e aperfeiçoar não se deve
concluir que acertaram em tudo ou tudo sabiam. Nós não dizemos com
Mr. de Chateaubriarid que em litteratura só devemos estudar os antigos:
Camões, Tasso, Klopstok não nasceram na Grecia ou em Roma, e
entretanto achamos tanto que estudar nos escriptos d'elles como nos de
Homero e Virgilio. O mesmo Mr. de Chateaubriand é uma prova de
que o genio não é partilha exclusiva de nenhuma epocha, de nenhum
povo. No renascimento das letras a admiração pelos auctores classicos
não deixou ver seus defeitos e erros, e julgou-se inviolavel a
antiguidade. Venia mereciam os descobridores dos preciosos
manuscriptos que continham o thesouro de idéas que nos herdaram os

gregos e os romanos: laboriosas indagações, largos annos de applicação
davam jus aos Vallas e aos Philelfos, aos Aldos e aos Stephanos, a não
verem uma só macula nos objectos caros que elles revelavam á Europa:
mas que, passados dois seculos, ainda a republica litteraria se
conservasse deslumbrada pelo fulgor tios tempos remotos, emquanto as
sciencias começavam a fazer justiça e a dar o seu a seu dono, é o que
nos parece inexplicavel ou, para melhor dizer, o que com repugnancia
explicariamos.
Embora se apresentassem difficuldades insuperaveis, embora fosse
preciso recorrer ás razões mais frageis, aos argumentos mais illusorios,
uma vez que as regras fossem ou se cressem originaes, ou derivadas
dos escriptos de Aristoteles ou de Horacio, de Cicero, de Quintiliano ou
de Longino, era obrigatorio defendê-las sob pena de ser havido por
ignorante ou por homem de minguado criterio. Boileau disse em uma
das suas satiras que só a verdade era bella: o padre Castel profundo
litterato que escreveu sobre o bello e sublime e que jurava ante os
numes defender esta proposição (porque em fim era de Despreaux),
sem mesmo se aproveitar da vaga distincção do verdadeiro e verosimil,
que tem salvado muita coisa e muita gente, começou a applicá-la por
esse mundo poetico; mas embicou logo com Virgilio. O verso
_Provehimur portu terraeque urbesque recedunt_ recalcitrava, além de
outros, contra a sentença do mestre. Que fez o bom rio
padre?--Zás--Uma razão digna de Fr. Gerundio: «O verso de Virgilio
exprime uma idéa verdadeira, porque ha ahi uns annos descobriu-se a
theoria do movimento; e voto a Apollo que a regra ha-de passar
inconcussa: o verso e bello porque é verdadeiro». Se fosse possivel um
padre grave ludibriar o publico, nós diriamos que elle estava
escarnecendo os leitores. Desejariamos que o padre Castel nos tivesse
explicado porque o verso era achado bello antes d'essa theoria e porque
o continuaria a
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