Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo IX | Page 7

Alexandre Herculano
se despenha; o engenho, dominado pelos preceitos que
muitos seculos por assim dizer, sanctificaram, contrafaz e apouca as
suas producções temendo cair naquillo que julga monstruoso e absurdo.
Tal é, geralmente, o estado da litteratura: e emquanto se não estabelecer
um corpo de doutrina que, afiançando a liberdade do poeta, o
circumscreva aos limites da razão, a republica das letras similhará as
associações politicas no meio de uma revolução espontanea onde o
despotismo extremo e a extrema licença, os terrores e as esperanças, a
felicidade e a desventura, se cruzam, se arruinam e se anniquilam no
meio de uma confusão espantosa.
Os que conhecem o estado actual das letras fóra de Portugal, na França,
na Inglaterra, e ainda na Italia, sabem ao que alludimos. Trememos ao
pronunciar as denominações de classicos e romanticos, palavras

indefinidas ou definidas erradamente, que sómente teem gerado
sarcasmos, insultos, miserias, e nenhuma instrucção verdadeira; e que
tambem teriam produzido estragos e mortes como as dos nominaes e
reaes, se estivessemos no XVI seculo. Infelizmente em nossa patria a
litteratura ha já annos que adormeceu ao som dos gemidos da desgraça
publica: mas agora ella deve despertar, e despertar no meio de uma
transição de idéas. Esta situação é violenta, e muito mais para nós, que
temos de passar de salto sobre um longo prazo de progressão
intellectual para emparelharmos o nosso andamento com o do seculo.
Se as opiniões estivessem determinadas, o mal ainda não seria tão
grande; mas é num cháos que nos vamos mergulhar e do qual nos
tiraremos talvez muito depois de outras nações. A influencia da
litteratura estrangeira torna necessario este acontecimento, se aquelles a
quem está encarregada esta porção do ensino publico não tractarem de
estabelecer uma theoria segura que previna tanto o delirio d'uma
licença absurda como a submissão abjecta que exige certo bando
litterario. Sabemos as difficuldades que tal trabalho encerra; porém o
amor da lilteratura vencerá todas quando ajudado do estudo e do genio.
As reflexões que ora apresentamos são fructo de uma parte de nossas
meditações sobre tal objecto. Desejariamos tê-las podido coordenar
todas e estabelecer melhor algumas; mas trabalhos, posto que litterarios,
de differente especie, impostos por um dever, nos distrahiram do nosso
desenho. Offerecemo-las aos eruditos para que tendo alguma utilidade
a aproveitem e sendo damnosas acautelem d'ellas aquelles a quem
podem ser nocivas. Nós nos envergonhariamos mais de ter acertado
com leveza do que de ter errado pensando.
Talvez alguem as julgue em demasia abstrusas; mas, ou o bello, objecto
da poesia, seja inteiramente resultado das relações das nossas
faculdades intellectuaes entre si, ou das d'estas faculdades com o
mundo objectivo, ou, finalmente, resida neste, é sempre a alma do
homem quem o sente e goza. Para nós a sua existencia depende da
nossa; e a metaphysica influirá sempre em qualquer systema que sobre
tal objecto venhamos a adoptar. Tem-se dito, e mil vezes repetido, que
é preciso para que a litteratura floresça afastá-la d'esta sciencia: isto
equivale a dizer-se que para os ramos de uma arvore se conservarem

virentes é mister decepar-lhe o tronco principal. Na poesia ha essencia
e fórmas: estas devem convir áquella, ou, diremos melhor, d'ella devem
partir. Sem levar o facho da philosophia ao seio das artes, sem
examinar a essencia d'estas, as theorias formaes ficam sem fundamento;
e é justamente o que tem acontecido. Seguiu-se quanto a nós, methodo
inverso ao que devera seguir-se, e um grande mal d'ahi resultou: a
fluctuação dos principios, e consequentemente dos juizos criticos.
Todos sabem das controversias de Boileau e seus sectarios com
Perrault, Lamotte, e ainda Fontenelle e Huet; mas o que nem todos
sabem é que muitas vezes os ultimos tinham razão. E se é possivel
entender uns e outros, veremos que o arruido nascia da incerteza ou da
contradicção dos preceitos, o que nunca succederia se a poetica
estivesse fundada em principios metaphysicos em que ambos os bandos
conviessem. Mas qual era a consequencia da versatilidade das regras e
das suas contradicções? O fazerem homens, aliás engenhosos, os juizos
mais contradictorios sobre a mesma coisa, e haver uma falta de
consciencia em todos esses juizos que salta aos olhos. A critica tomou
naquella epocha um caracter mesquinho e pedante. Nem acreditemos
que esse mesmo Boileau, tão gabado pelos seus franceses como homem
de summo gosto e fino tacto, sobrelevasse muito outros seus
contemporaneos. A falta d'esse gosto e d'esse tacto achamos nós numa
carta a Brossette acêrca do Telemacho. Esta grande creação de um dos
maiores genios do seculo (perdoem-nos os admiradores do inquisitorial
e raivoso Bossuet) foi comparada pelo autocrata litterario da França
com o romance de Theagenes e Chariclea de Heliodoro bispo de Tydea,
romance obscuro escripto na decadencia do imperio romano e da antiga
litteratura: bastava esta carta para sabermos o peso que deviamos dar ás
decisões
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