Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo IX | Page 3

Alexandre Herculano
difficil pelo audaz das figuras, pelo
gigantesco das imagens, elle soube escapar aos defeitos e frioleiras do
seiscentissimo que bebera na eschola, em composições nas quaes era
mui facil introduzir-se o mau gosto; e ainda que Quita e Garção
tentaram o mesmo genero, em nosso intender, Dinis não foi emulado.
Capaz de todos os tons, no burlesco, no pastoril, no dithyrambico, nos
deixou apreciaveis exemplos, e as suas dissertações sobre a poesia
campestre são dictadas por um grande conhecimento da arte, ainda que
não excedam em merecimento theorico as annotações de Gomes ás
proprias poesias, nem os trabalhos de Freire e posteriormente de

Barbosa e Fonseca sobre as poeticas de Aristoteles e Horacio.
Entretanto nenhum dos poetas e litteratos do seculo de José I olhou as
letras de um ponto de vista eminente. Similhantes aos escriptores do
seculo de Luiz XIV, foram muito eruditos, mas pouco philosophos, e
assim o caracter das duas litteraturas é a confusão dos principios
absolutos com os de convenção. Cingindo-se quasi cégamente á
auctoridade dos antigos, miudeada e explanada pelos commentadores, a
sua obediencia illimitada a alheias opiniões contribuiu muito para a
posterior decadencia. A impertinente questão dos archaismos e
neologismos veiu tomar o logar das discussões da Arcadia e essa
occupação dos meios talentos e da meia instrucção, influindo sobre
objectos mais importantes, viciou e acanhou toda a litteratura. Se as
notas, que sobre palavras e phrases Francisco Manuel ajunctou ás suas
poesias, fossem dedicadas a coisas, quão ricas messes nós colheriamos
do saber d'este homem! Mas infelizmente não foi assim, e a polemica
suscitada sobre o merito do immortal cantor dos Lusiadas, pelos
insultos que contra elle vomitou o orgulhoso auctor do gelado Oriente,
mostraram a que mesquinho estado tinha a critica chegado em Portugal.
Parte dos reparos que Macedo copiou dos criticos franceses ficaram
sem cabal resposta, porque os systemas estheticos mais liberaes e
philosophicos que o dos antigos, e o da eschola de Boileau, eram em
geral desconhecidos entre nós, e estamos persuadidos de que o juizo a
respeito do tão grande quanto infeliz Camões ainda resta a fazer, apesar
da abundancia de escriptos que sobre este objecto se publicaram.
Emquanto assim entre nós a critica se apoucava, um sentimento vago
de desgosto pelas antigas fórmas poeticas, a influencia da philosophia
na litteratura, a necessidade que sentia o genio de beber as suas
inspirações num mundo de idéas mais analogas ás dos nossos tempos, e
emfim, varias outras causas difficeis de enumerar, começaram a crear
na Europa uma poetica nova, ou, digamos antes, a fazer abandonar os
canones classicos. A Alemanha foi o foco da fermentação, e foi lá que
os principios revolucionarios em litteratura começaram a tomar desde a
sua origem uma consistencia, e a alcançar uma totalidade de doutrinas
methodicas e consequentes, não dada, ainda hoje, ao resto das nações.
Lá não havia a luctar com a gloria nacional para a introducção de novas

idéas, porque os monumentos da eschola afrancesada de Opitz não
honravam demasiadamente o dogmatismo intolerante do seculo de Luis
XIV, impropriamente chamado classico, e Bodmer e Breitinger deram
começo á revolução ousando preferir a poetica de Shakspeare e de
Milton á de Racine e de Boileau; comtudo as opiniões na Alemanha
teem-se desviado, em parte, d'esta direcção e as idéas de Schlegel já
teem reagido na sua tendencia um tanto nova, sobre a litteratura inglesa
donde tiveram origem. Na França o antigo systema, amparado pelo
renome de muitas producções immortaes, disputa ainda a campanha ás
innovações que entre esse povo, extremo em tudo, teem chegado a um
deseafreamento barbaro e monstruoso.
Mas a Portugal não coube o figurar nesta lide. A parte theorica da
litteratura ha vinte annos que é entre nós quasi nulla: o movimento
intellectual da Europa não passou a raia de um país onde todas as
attenções, todos os cuidados estavam applicados ás miserias publicas e
aos meios de as remover. Os poemas D. Branca e Camões appareceram
um dia nas paginas da nossa historia litteraria sem precedentes que os
annunciassem, um representando a poesia nacional, o romantico; outro
a moderna poesia sentimental do Norte, ainda que descobrindo ás vezes
o caracter meridional de seu auctor. Não é para este logar o exame dos
meritos e demeritos destes dois poemas; mas o que devemos lembrar é
que elles são para nós os primeiros e até agora os unicos monumentos
de uma poesia mais liberal do que a de nossos maiores.
Comtudo, não existindo ainda um só livro sobre as letras consideradas
de um modo mais geral e mais philosophico do que os que possuimos;
sem uma só voz se-ter levantado contra a auctoridade de Aristoleles e
de seus infieis commentadores, será impossivel emittir um juizo
imparcial sobre escriptos de similhante natureza. Julgá-los por fórmas
que o poeta não admittiu, será um absurdo, emquanto se
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