Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo IX | Page 2

Alexandre Herculano
vinte combates do cêrco da cidade, em todos em que
interviera o glorioso batalhão a que pertencia de Voluntarios da Rainha.
Segundo resam formais attestados, e era proprio do altivo caracter que
elle nunca desmentiu, em todos esses combates dera aos companheiros
de armas exemplos de inexcedivel destemor, de arrojada bravura.
Levantado o cêrco despia os trajos de soldado e quando se lhe afigurou
terminada a lucta pelas armas, surgiu cheio de enthusiasmo, revelando
inesperados conhecimentos e como vulto dominante do Repositorio, a
pelejar no campo das idéas. Pela leitura dos dois artigos transcriptos
d'essa folha, se ajuizará da originalidade e vigor com que deu começo á
propaganda exposta no discorrer do tomo. O primeiro descreve o estado
geral da nossa litteratura naquelle periodo de transição, visando
norteá-la á luz das novas aspirações e exigencias sociaes, e nas varias
fórmas em que ella tinha de manifestar-se. O segundo trata da poesia
em especial, e como se o auctor já então quisesse dar medida do
poderoso engenho analytico de que era dotado, ao passo que vai
explanando com extraordinaria erudição e lucidez a famosa questão dos
classicos e romanticos, vai tambem deduzindo e conglobando as bases
de uma alta poetica de concepção propria, com o pensamento de afastar
o genio nascente das aberrações de uma e outra d'aquellas seitas, e de o
guiar para a fecunda desenvolução litteraria em que meditava.
A par d'estes artigos abria o novel escriptor nas columnas do
Repositorio, com a descripção das escholas de ensino elementar da
Prussia, a campanha em parte descripta no tomo VIII de opusculos, e

que não mais abandonou, em prol da instrucção popular. Provocando o
confronto da excellencia d'aquellas escholas com a obscuridade das
nossas, frisava por esse meio o alcance do grave assumpto, pondo em
relevo perante os homens cultos e aquelles a quem competisse dirigir
os destinos da nação, o maior dos obstaculos que tinham a vencer para
assegurar o bom exito das instituições liberaes. O absolutismo politico
fôra derrubado pelas armas e pelas geniaes concepções legislativas,
arremessadas contra elle em som de guerra. Chegava o momento de
lançar novas e grandes idéas, de suggestionar os espiritos para que
sobre os escombros do derrocado edificio se erguesse gradualmente o
da liberdade e da civilização. Era com o profundo sentimento, a nitida
visão d'esta imperiosa necessidade social, que A. Herculano se estreava
como propagandista no memoravel periodico portuense.
Maio de 1907.
O coordenador.

Qual é o estado da nossa litteratura?
Qual é o trilho que ella hoje tem a seguir?
*REPOSITORIO LITTERARIO*
1834

Qual e o estado da nossa litteratura?
Qual é o trilho que ella hoje tem a seguir?
Estas duas perguntas pedem nada menos do que a dolorosa confissão da
decadencia em que se acha em Portugal a poesia e a eloquencia, e o
encargo difficultoso de indicar os meios de melhoramento no ensino e
no estudo d'ellas. Sem pretender que sejam as unicas, nem as melhores,
exporemos a serie das nossas idéas sobre este duplicado objecto.

A convicção de uma verdade litteraria produziu nos seculos XVI e
XVII um erro na Italia, que, extendendo-se á Hespanha e a Portugal,
transviou da legitima direcção todos, ou quasi todos os escriptores da
epocha chamada do seiscentismo. Sentiu-se que a metaphora, a mais
bella de todas as figuras poeticas e oratorias, a mais repetida, a mais
necessaria mesmo nos discursos communs da vida, abundava por isso
nos bons escriptores classicos e modernos, que já nesse tempo
illustravam a Europa: viu-se que as passagens bellas ou sublimes de
Horacio, Pindaro e Virgilio, de Dante e Ariosto, deviam-lhe em grande
parte a sua belleza e sublimidade, e isto era certo; inferiu-se d'ahi que a
metaphora era o principal e talvez o unico meio da poesia e eloquencia,
e que ella devia revestir todas as imagens e sujeitar ao seu imperio
todos os generos, todos os estylos, e isto foi um erro: a vertigem
metaphorica se apossou dos poetas e oradores, e, por uma consequencia
natural, o fundo das idéas esqueceu e só se olhou para as fórmas: á
sombra d'esta mania prosperavam os conceitos e as agudezas, chegando
as letras a caír numa barbarie, que tanto mais irremediavel parecia por
ser filha da civilização litteraria já exaggerada. O Zodiaco soberano, Os
crystaes d'alma, _A Fenix renascida_ e outros muitos escriptos d'esse
tempo, são lamentaveis monumentos da corrupção de gosto a que
chegou Portugal no principio do decimo oitavo seculo.
Porém o mal não foi sem remedio, e os membros da Arcadia fizeram
volver as letras á severa singeleza das puras fórmas da Grecia. Muito ae
deve a Garção, Gomes e Quita; mas ninguem tanto como Dinis mostrou
a superioridade do genio e do gosto que caracterizaram a segunda
metade do seculo XVIII. Dando os seus principaes cuidados á poesia
chamada pindarica, genero
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