Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II | Page 8

Alexandre Herculano
dispender muito ouro, e esqueceis que esse ouro ficou por m?os portuguesas? E falaes de economia politica, e anniquilaes o capital dos monumentos? Adoradores do camartello, por qualquer lado que se observe a vossa obra, n?o se descobre sen?o o absurdo.
Quizeramos que os homens deste paiz que tem cora??o português fizessem uma associa??o, cujo trabalho de patriotismo ligasse os seus membros dispersos por todo o reino; que os residentes em Lisboa constituissem uma especie de juncta, á qual os das provincias, logo que á sua noticia chegasse a demoli??o de algum monumento da historia ou da arte, remettessem uma breve nota, individuando as circumstancias do edificio destruido e o nome do arrasador, quer este fosse magistrado ou funccionario publico ou municipal, quer fosse individuo particular. Quizeramos depois que essa breve nota, sem reflex?es, sem affrontas, estampada em todos os jornaes, se legasse á posteridade. Nenhuma lei prohibe que se narre, singelamente e sem o qualificar, um facto que o seculo julga indifferente. Ninguem, por certo, teria a queixar-se de semelhante publica??o. Eram simplesmente factos que se transmittiam á aprecia??o da posteridade; era apenas um trabalho historico.
?Mas isso provocava as maldic??es dos vindouros.--E que importam as maldic??es dos vindouros ao que n?o cura nem da arte, nem do passado, nem do futuro, nem da gloria nacional, nem da memoria de seus avós, nem dos sepulchros, nem das tradi??es, nem sequer, emfim, dos interesses materiaes que resultam e h?o de resultar da conserva??o dos monumentos? Que importa isso áquelles para quem os horisontes da vida s?o exclusivamente os horisontes da terra? Nada. Ririam desse corpo de delido de terrivel processo. Mas, talvez, seus filhos e netos n?o rissem, vendo-se obrigados a renegar de um nome, no qual gera??es mais allumiadas e mais nobres haviam for?osamente de imprimir o ferrete de perpetua deshonra.
III
Os xeques da tribu arabe de Bka estavam um dia, pela volta da tarde, assentados juncto das columnas de um templo, na extremidade oriental da acrópole de Balbek.
D'aqui, pondo a m?o sobre os olhos para os resguardarem do sol que os deslumbrava, os chefes da tribu de Bka alongavam a vista para a banda do poente.
E o sol, que descia rapido, mandava a sua luz suave atravez daquellas arcarias gigantes o immensas; daquellas columnas monolithas, a menor das quaes os bra?os de dez mil árabes n?o valeriam a erguer.
A hora era de medita??o e de melancholia, e os xeques olhavam com aspecto carregado para a ossada grandiosa da erma cidade, que é como um olhar de desdem com que o mundo antigo contempla o mundo moderno, e é ao mesmo tempo demonstra??o solemne da vaidade disso a que se chama poderio e gloria, cuja dura??o se confunde na eternidade com a dura??o de um dia.
E por entre aquellas rumas de mármores e de syenites viam-se passar, buscando as suas leves e moveis habita??es, dispersas entre as ruinas, os arabes do deserto, semelhantes aos gusanos que refervem no cadaver meio apodrecido do elephante abandonado pelos ca?adores nas margens solitarias do Zambeze.
E depois de largo silencio, um dos xeques abaixou os olhos e, com voz presa de furor intimo, disse para os companheiros:
?Porque consentiremos nós, os filhos do Propheta, que estes gigantes de pedra estejam continuamente assoberbando a tenda humilde do arabe, que passa livre no mundo?
Se a nossa vida é um instante, o homem n?o deve construir edificios destinados a transpor seculos. é quasi blasphemia revestir o transitorio com o trajo da eternidade. A eternidade n?o é da terra; é do paraiso. Porque haviam de querer os que já n?o s?o immobilisar no deserto para os seus ultimos netos esse arraial quasi interminavel de tendas de pedra?
Para que semeiaram as gera??es passadas uma seara immensa de abysmos pelos pendores do Ante-Libano, arrancando delle pedreiras macissas, como se fossem os gr?os de areia, com que ergue collinas movedi?as o sopro do Simúm quando varre o deserto?
Que temos nós com os tempos que já passaram, para que elles venham increpar-nos com a muda insolencia dos monumentos o nosso livre e solto viver, e instituir parallelos offensivos entre a decadencia actual e o esplendor das artes e a magnificencia laboriosa e incommoda daquellas eras de grandeza e poderio?
Que importa que ent?o saissem da Assyria os conquistadores da Asia e as frotas que descobriam novos céus e novos mares, ou que os poetas de ent?o tivessem para cantar lendas de fa?anhas quasi incriveis?
Em vez das conquistas, a liberdade. Hoje n?o ha acto que seja defeso ao arabe do deserto. Corremos livres por livres descampados. Embora o reluzir do sabre de um spahi de Ibrahim fa?a fugir aterrados cem cavalleiros nossos, e o frangue do occidente nos despreze como barbaros. Saboreamos quietamente o p?o esmolado ou arrebatado ao que o cultivou para nós. Da bolsa do viandante o ouro cai-nos aos pés com seu dono. O nosso
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