Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II | Page 7

Alexandre Herculano
seculo XIV foi, sem duvida, a muralha com que el-rei D. Fernando cingiu Lisboa. Todos julgavam impossivel a sua edifica??o, dizem os chronistas, porque suppunham que levaria cem annos a construir: aquelle principe soube, porém, acabá-la em dous. Os povos foram chamados de grandes distancias a trabalhar nella, fazendo-se aliás, todas as preven??es para suavisar aquella especie de anudúva extraordinaria. A esta muralha deve hoje Portugal n?o ser uma provincia d'Hespanha, porque salvou Lisboa de cahir nas m?os d'el-rei de Castella. Se isto se tivesse realisado, o reino estava perdido. Considerada a semelhante luz, a muralha de D. Fernando era, talvez, o nosso mais importante monumento historico. O progressivo accrescimo da capital tinha-a em grande parte destruido; mas restava ainda, além de outros, um lan?o importantissimo. Era o angulo que fechava a cidade pelo lado do bairro dos judeus. Por este angulo, onde houvera uma porta e onde ainda restavam os vestigios de uma torre que a defendia, a torre de Alvaro Paes, se podia delinear quasi exactamente a direc??o que seguiam os dous lan?os de norte e de oeste. Era, assim, uma especie de padr?o que indicava os limites septemtrionaes e occidentaes da povoa??o, e uma reliquia que demonstrava a grossura e solidez da antiga muralha, mui superior á de outras porteriormente construidas em epochas mais ricas e mais civilisadas.
Este angulo, este fragmento, testemunha do periodo mais glorioso da nossa historia, lá se está derribando para se fazer uma pra?a quanto possivel ampla. Homens gigantes, como nós, n?o cabem onde couberam nossos avós, pygmeus conquistadores da Africa e da India. Far-se-ha pois uma pra?a, que, se n?o prestar para mais nada, poderá servir de mercado de hortali?a. Uma pyramide de repolhos substituirá o adarve, por onde, em noite sem lua, se viam a espa?os scintillar as armaduras dos escudeíros ou cavalleiros idos em sobrerolda a vigiar as roldas dos besteiros do conto da cidade, quando pela terceira vez no reinado de D. Fernando os castelhanos a accommettiam com grande poder. Alli, no sitio daquella porta, por onde o, depois t?o celebre, Nunalvares sairia muitas vezes nessa conjuctura a espalhar o terror e a morte entre os homens de armas inimigos, venha a lide incruenta sobre o pre?o da couve, sobre o vi?oso ou murcho das favas, substituir o grito clamoroso de S. Jorge, que chamava nosso avós, os rudes burgueses do seculo XIV, aos combates em defesa da patria.
O que estes netos de Attila, de collarinhos e peitilhos engommados, s?o, sobretudo, é ridiculos.
Vergonha é confessá-lo: os estrangeiros tem mostrado maior venera??o pelas antiguidades do nosso paiz do que os portugueses. Um estrangeiro salvou no convento dominicano de Bemfica a antiga capella de D. Jo?o de Castro. Ha pouco ouvimos outro, em cujos olhos chammejava a indigna??o, clamar altamente contra a barbaria com que se deixavam estragar no mosteiro de Belem varios quadros magnificos de eschola portuguesa, nos quaes os passaros, entrando pelas frestas mal reparadas do edificio, v?o amontoando as immundicies. Mas estes estrangeiros s?o homens que sabem qual seja o valor dos monumentos da arte e da historia. Nós é que temos perdido o sentimento e a intelligencia para apreciar essas cousas.
Se com a nossa incuria aggressiva e com a nossa raiva assoladora desmentimos o passado, para darmos em tudo documento de insipiencia desmentimos, até, essas mesmas opini?es e tendencias do presente, a que recorremos para condemnar em nome do progresso, sem distinc??o nem juizo, o mau e o bom de eras antigas. é a economia politica a sciencia do nosso tempo: todos falam em capitaes, em industria, em riquezas sociaes, em valores. Mas que ser?o os monumentos? Que ser?o essas admiraveis aggrega??es de marmore ou de granito? S?o o resultado ou producto da concep??o, da applica??o e da execu??o: vem a ser, portanto, uma riqueza social. E por quê e para quê annullaes vós essa riqueza? Dado que representasse um capital improductivo, com que intuito o deitaes fóra? N?o o s?o, porém, na sua maxima parte, os monumentos. Quando a arte ou os factos historicos os tornam recommendaveis, convertem-se em capital productivo. Calculae quantos viajantes ter?o atravessado Portugal neste seculo. De certo que n?o vieram cá para correrem nas nossas commodas diligencias pelas nossas bellas estradas, ou navegarem nos nossos rapidos vapores pelos nossos amplos canaes; de certo que n?o vieram para aprenderem a agricultar com os nossos agricultores, nem a fabricar com os nossos fabricantes; mas para admirarem os mosteiros da Batalha, de Alcoba?a e de Belem, a sé velha Coimbra, a cathedral, a igreja de S. Francisco e o templo romano de Evora, a matriz de Caminha e a collegiada de Guimar?es, os castellos da Feira e de Almourol, e emfim, tantas obras primas de architectura que encerra este cantinho do mundo. Crêdes que esses romeiros da arte voltam da romagem aos seus lares sem
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