Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II | Page 9

Alexandre Herculano
trabalho é apenas erguer aquelle quando este cai. Depois de uma vida sem sacrificio, sem amarguras, que nenhum monumento contará aos vindouros, dormiremos na paz do esquecimento, porque n?o deixaremos vestigios da nossa jazida. N?o se revolvem os ossos dos mortos, quando o seu ultimo abrigo é a amplid?o do nosso oceano de areias, que n?o consente nem lapides, nem inscrip??es, nem edificios na sua face tristemente pallida.
Porque, pois, continuar?o eternamente erguidos estes templos, estes palacios, estas muralhas, reprehens?o ou antes injuria perpetua ao nosso viver?
Que se ajunctem os filhos das profundas solid?es do deserto, e que, dia a dia, v?o esboroando uma parte, minima que seja, desses pannos de muros de cem covados, formados de poucas pedras; dessas columnatas, sobre cujos frizos e arestas pousa á noite o abutre, como costuma pousar sobre a cumiada de longa serrania, a que essa obra de homens se assemelha.?
Callou-se o xeque. Os outros abaixaram as cabe?as com lento meneio, como quem approvava o dicto.
Se eu, se vós, chegassemos neste momento ao pé do velho templo de Balbek e ouvissemos o discursar do beduino, o que diriamos no primeiro impeto de justissima indigna??o?
Diriamos que o xeque era uma vibora, que, esmagada debaixo de vinte seculos, queria voltar contra a historia os dentes envenenados, como se a pe?onha da sua colera podesse anniquilar a historia.
E antes que a nefanda obra que elle tra?ava e os demais applaudiam come?asse a ser executada, falariamos assim áquelles loucos:
?Vós outros quereis derribar a memoria das gera??es que foram, porque a magestade do passado pesa mais sobre a vossa consciencia do que pesam sobre esse ch?o que parece acurvar-se e gemer debaixo de tantas grandezas, os pylones macissos, as sphinges gigantes, as arcarias profundas, as pedras de dez covados inseridas em muralhas indestructiveis. Melhor fora que forcejasseis por ser tambem grandes, convertendo-vos á virtude antiga, e que, em vez de constituir um bando de miseraveis, vos tornasseis n'uma na??o illustrada e forte, capaz de legar á posteridade monumentos como estes, quando lhe chegasse a sua ultima hora; porque a morte abrange todas as sociedades, todas as civilisa??es, como abrange todos os individuos.
Credes que a luz do sol occidental, batendo nas columnas avermelhadas do velho templo, vos reflecte nas faces envilecidas o rubor que as tinge? N?o sentis o sangue que estas palavras vos fazem subir do cora??o ao gesto? é o sangue e n?o o marmore; é que, mau grado vosso, ellas foram despertar uma voz que n?o podeis soffocar, a da consciencia, que vos reprehende da actual decadencia. A vermelhid?o que surgiu nessas faces crestadas n?o reflecte da pedra lisa; reflecte-se das almas que se rebellam contra si mesmas.?
Ouzariamos nós, em verdade, dizer isto aos beduinos, sem que tambem o rubor viesse tingir-nos as faces?
N?o; porque somos como elles; porque, bem como elles, nos persuadimos de que, varrendo todos os vestigios do Portugal antigo, poderemos esconder aos estranhos a nossa decadencia actual; porque, além disso, cremos que para ser deste seculo, é preciso renegar dos antepassados.
Todavia, ainda ha quem deplore a destrui??o das memorias venerandas de melhores tempos; ainda ha quem lucte contra a torrente de barbaria que alaga este paiz t?o rico de recorda??es, recorda??es que tantos animos envilecidos pretendem fazer esquecer. Sabemos que os nossos brados de indigna??o acham echo em muitos cora??es. Temos visto e recebido cartas acerca deste assumpto escriptas com a eloquencia da convic??o e de profundo despeito. S?o protestos solemnes de que nem todos os filhos desta terra venderam a alma ao demonio da devasta??o. Provam ellas que o ruido dos alvi?es e picaretas n?o basta para afogar os brados da raz?o, da consciencia e do amor patrio. Lendo-as, o sangue referve nas veias contra essa idéa fatal que entrou na maioria dos espiritos, de que tudo quanto é antigo é mau ou insignificante, quando a peior cousa que ha é essa idéa, a mais insignificante a cabe?a onde se aninha, a mais destestavel a m?o que a traduz em obras, estampando sobre a terra da sua infancia a inscrip??o que o atheismo decreta para os sepulchros:--aqui é a jazida do nada.
é singular, por exemplo, a historia das recentes vicissitudes por que tem passado a collegiada de Sancta Maria da Oliveira em Guimar?es. Guimar?es parece fadada para victima desta especie de escandalos. A igreja da collegiada de Guimar?es era um dos mais bellos monumentos de architectura ogival. O seu tecto de grossas vigas primorosamente lavradas constituia com o da sé do Funchal e poucas mais toda a riqueza de Portugal neste genero, porque, durante a idade média, empregava-se geralmente a abobada de pedra nas edifica??es sumptuosas. Além disso, as bem proporcionadas arcarias, os capiteis adornados de esculpturas variadas e subtis, as tres naves magestosas divididas por elegantes columnas, inspiravam em subido grau aquelle respeito melancholico e saudoso que é um segredo das

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