Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II | Page 6

Alexandre Herculano
daquelle hespanhol fanatico. A lapide sepulchral de um dos homens mais sabios e eloquentes que a Peninsula gerou lá jazerá a estas horas nos fundamentos de algum edificio, cujo rendimento, abatidos decima e concertos, o vandalismo e o dono achar?o de certo preferivel á gloria de Fr. Luiz de Granada.
Oh, civilisa??o!
Levaram-nos a Coimbra em 1834 obriga??es de servi?o publico. Residiamos ahi quando foi supprimido o mosteiro de Santa-Cruz. Correu ent?o a noticia de que se pretendia pedir ao governo que esse bello edificio fosse doado ao municipio. Mas, para que? Para a camara o arrasar e fazer uma pra?a. N?o se realisou o nefando alvitre; mas os bons desejos n?o faltaram. Uma pra?a no logar onde estivera Sancta-Cruz; uma pra?a cal?ada com os fragmentos dos rendados umbraes do velho templo, com as lageas quebradas dos tumulos de Affonso Henriques e de Sancho I e dos demais var?es illustres que alli repousam! Ha ahi, porventura, quem avalie a sublimidade de tal pensamento e me?a a incommensuravel distancia que vai d'um edificio monumento, onde apenas ha historia, arte, poesia, religi?o, a um terreiro amplo, bem amplo, onde a vadiagem possa estirar-se regaladamente ao sol? Infelizmente; a cidade litteraria, a alma mater, ficou privada deste documento ineluctavel da sua illustra??o.
Pelas largas que tem tomado o vandalismo, podemos assegurar que dentro deste seculo n?o haverá em Portugal um monumento. O Mexico ufanar-se-ha do seu templo de Palenque, da sua pyramide de Tehuantepec; a India dos subterraneos de Ellora e de Elephanta, e até, os habitantes barbaros da Australia ter?o que mostrar aos estrangeiros os moraes dos seus antigos deuses. Só nós os portugueses n?o lhes poderemos dizer:--?eis os testemunhos indubitaveis de que fomos uma na??o antiga e gloriosa?.
Correi as principaes cidades do reino; buscae os mais veneraveis edificios. Ou jazem por terra ou foram applicados a usos que lhes est?o produzindo a ruina. A bella e grandiosa igreja de S. Francisco do Porto, único monumento importante do seculo XV que possuia aquella cidade, foi consagrada a armazem da alfandega. O mosteiro dos Jeronymos em Belem, obra prima da architectura média entre ao néo-gothica e a da chamada do renascimento, edificio magnifico de uma epocha de transi??o na arte, como Sancta Sophia de Constantinopla o é de uma epocha analoga, foi deturpada, n?o nos importa por quem, e o seu maravilhoso claustro ludibriado com tapumes caiados e convertido em dormitorios for?amente humidos e mals?os. A Batalha, Alcoba?a, o convento da ordem de Christo em Thomar cáhem em ruinas, e diz-se--?que importa?? Barbaros! Importa a arte, as recorda??es, a memoria de nossos paes, a conserva??o de cousas cuja perda é irremediavel, a gloria nacional, o passado e o futuro, as obras mais admiraveis do engenho humano, a historia, a religi?o. Vós, homens da destrui??o, dos alinhamentos, dos terreiros, da civilisa??o vandalica, é que importaes bem pouco; porque, semelhantes a vermes, roeis e n?o edificaes; porque n?o deixareis rasto no mundo depois de apagar tantos vestigios alheios; porque nada valendo, menoscabaes os que valeram muito; porque se um templo, um mosteiro, um castello duraram seis ou oito seculos e durariam, sem vós, outros tantos, as vossas picaretas, as vossas alavancas, os vossos camartellos estar?o comidos de ferrugem e informes antes de vinte annos, e s?o essas as unicas e tristes memorias da vossa ominosa passagem na terra.
Desprezar os monumentos é brutal; persegui-los é impio e sacrilego. Os que os desprezam fazem o que faziam os lombardos, apoderando-se da Italia, ás formosas obras da architectura greco-romana. Deixavam-nas perecer; porém n?o as destruiam. Os que as arrasam ou mutilam s?o adeptos de uma velha heresia que resurge; s?o iconoclastos redivivos.
Procurae hoje, por exemplo, em Lisboa as antiquissimas igrejas parochiaes de Sancta Marinha e de S. Martinho: achareis os logares onde estiveram, e achá-los-heis, porque aos hunos encapados em lemiste n?o é dado supprimir um fragmento do orbe terraqueo. Os homens desta Lilliput da intelligencia est?o desentulhando aquelles terrenos para fazerem casas. Onde haviam elles de morar, sen?o fizessem alli mais umas casas? Sancta Marinha encerrava memorias anteriores á monarchia, e a parochia de S. Martinho prendia-se com a historia da grande crise por que Portugal passou nos fins do XIV seculo. Mas de que momento é essa considera??o, se attendermos a que lá, onde estiveram os dous templos ricos de idade e de tradi??es, se podem construir duas moradas bem pintadas, bem alvas exteriormente, com sua beirada vermelha e seu rodapé amarello? Que importa que se dispersem os ossos do conde Andeiro ou se desfa?a a sepultura do conde de Alvor? As cinzas dos mortos podem jazer t?o tranquillas debaixo do balc?o de uma taberna, como aos pés de um altar, á sombra da eterna cruz. Bemdicta sejas tu, gera??o philosophica, gera??o arrasadora, gera??o camartelladora! O futuro, está certa disso, ha de fazer-te justi?a.
Uma das mais notaveis obras do
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