Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II | Page 5

Alexandre Herculano
a malevolencia selvagem, a philosophia da brutalidade. Dura ha poucos annos; mas esses poucos annos dar?o maior numero de paginas negras á historia da arte do que lhe deu seculo e meio. O pic?o e o camartello só ha bem pouco tempo que podem dizer--triumphámos. Até ent?o escali?avam-se paredes, ro?avam-se esculpturas, faziam-se embréchados; mas agora derribam-se curuchéus, partem-se columnas, derrocam-se muralhas, quebram-se lousas de sepulturas, e v?o-se apagando todas as provas da historia. Faz-se o palimpsesto do passado. Corre despeiado o vandalismo de um a outro extremo do reino, desbaratando e assolando tudo. Comico perfeito, desempenha todos os papeis, veste todos os trajos. Aqui é vereador, alli administrador de concelho: ora é ministro, logo deputado: hoje é escriptor, ámanhan funccionario. Corre na carruagem do fidalgo, faz assentos de debito e credito no escriptorio do mercador, dá syllabadas em latim de missaes, préga nos botequins serm?es d'economia politica e do direito publico, capitaneia soldados, vende bens nacionaes, ensina sciencias; em summa, é tudo e mora por toda a parte. Attento ao menor murmurio dos tempos que foram, indignado pela mais fugitiva lembran?a das gera??es extinctas, irrita-se com tudo que possa significar uma recorda??o. Assim excitado, argumenta, ora, esbraveja, esfalfa-se. O eretismo dos nervos só póde affrouxar-lho, como as harmonias melancholicas de harpa eolia, o ruido de algum monumento que desabe.
Apesar da ferocidade nervosa do vandalismo, n?o se creia, todavia, que elle é desalinhado no vestuario, carrancudo na catadura, descomposto nos meneios. Nada disso. O vandalismo é aprimorado no trajo, lhano e grave a um tempo no porte, pontual na cortezia. Encontrá-lo-heis nas sallas requebrando as damas, dan?ando, tomando chá; no theatro palmeiando com luvas brancas os lances dramaticos. Entende francês e leu jà Voltaire, Pigault-Lebrun e os melhores tractados do wisth: quasi que sabe ler e escrever português. O vandalismo é culto, instruido, civil, affavel. Tirem-lhe de diante os monumentos; será o epilogo de todos os dotes e boas qualidades; será a mansid?o incarnada.
Mas, infelizmente para elle, o velho Portugal estava cuberto de recorda??es do passado. Cada facto historico tinha uma igreja, uma casa, um mosteiro, um castello, uma muralha, um sepulchro, que eram os documentos perennes desse facto e da existencia dos individuos que nelle haviam intervindo. Encontrando tantas injurias mudas á decadencia presente, o vandalismo irritou-se, ergueu-se e falou em feudos, em dizimos, em corrup??es fradescas, em maninhádegos, em servos de gleba, em direitos de osas, em supersti??es; catou, em summa, todas as vergonhas e deshonras do passado que p?de e soube, entresachando-as com senten?as e logares communs do cathecismo politico de Ramon Salas e, por uma logica incomprehensivel, por uma logica sua, chamou os homens do alvi?o e da picareta e come?ou a derribar, victoriado pelo povo. Só elle, immovel no meio da mobilidade do nosso tempo, no meio das opini?es encontradas, das luctas, das commo??es, tem apontado constante ao seu alvo, a demoli??o indiscriminada do passado. Assim, pertence a todos os bandos politicos, acceita todos os principios, curva-se a todos os jugos, comtanto que o deixem roer os testemunhos da historia e da arte; que o deixem fazer-nos esquecer da gloria nacional e de que somos um povo de illustre ascendencia. Este pensamento é o seu pensamento unico, perpetuo, inabalavel.
Ha pouco que que da villa de Peniche nos escreviam o seguinte: ?Tendo havido quem ousasse revolver e desfazer o tumulo em que jazia o cadaver de D. Luiz de Athaide, na igreja do extincto convento do Bom-Jesus desta villa, o facto excitou nos que concorreram a observar os despojos mortaes daquelle heroe vivos desejos de ouvirem falar da sua vida e feitos.? N?o nos fallecem cartas em que se contenham noticias de analogas profana??es. De todos os angulos do reino se alevantam brados de homens generosos, que lamentam a ruina dos velhos edificios, a profana??o das sepulturas, a destrui??o de todas as memorias da arte e da historia. Quem hoje quizesse escrever as biographias dos nossos homens illustres, talvez já n?o podesse dizer onde actualmente jazem os restos da maior parte delles. O bra?o omnipotente do vandalismo estendeu-se para os sepulchros; as campas estalaram e os ossos de nossos avós lan?aram-se aos c?es e rolam pelo pó das estradas e pelas immundicies das ruas. As inscrip??es lapidares v?o-se enterrando por alicerces e paredes, n?o á face destas, porque ahi alguem ainda poderia lê-las; mas no fundo dos cavoucos ou no amago dos muros. Sem isso, n?o nos vangloriariamos com inteira justi?a de ter completamente renegado de nossos maiores.
Referiu-nos um respeitavel viajante hespanhol que, entre os entulhos do convento de S. Domingos de Lisboa, vira uma lagea onde se lia o epitaphio de Fr. Luiz de Granada. Sollicitou dos demolidores que a tirassem do meio das ruinas, porque essa pedra era valiosa memoria. Provavelmente os economistas da alavanca, os philosophos da picareta riram a bom rir do desvario
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