Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II | Page 4

Alexandre Herculano
barbaria pretenciosa e civilisada. Passou por lá o pic?o do reformador, a colher do estucador, o mordente do dourador. Paredes, pilares, capiteis, la?arias, ogivas est?o rebocados, alvos, polidos, dourados. A luz do sol já n?o bate no pavimento do templo convertida em luz ba?a e saudosa pelos vidros córados das frestas esguias, dos espelhos circulares: agora alaga em torrentes essas paredes brancas e lisas, que fingem ás vezes absurdamente pedras impossiveis estendidas pela colher do alveneu sobre a face rugosa, mas secular e veneranda, da verdadeira pedra. O templo de Deus é como a sala do baile, como a sala dos legisladores, como a sala do theatro, como a pra?a publica, sem mysterios, sem tradi??es, sem saudades.
Mas se a culta barbaria dos nossos avós e de nossos paes forcejou por cobrir com remendado véu os monumentos dos primeiro seculos da monarchia, deixou em muitos delles ao menos, os seus formosos e ideaes perfis, as suas linhas architectonicas. O pensamento que inspirou essas concep??es grandiosas como que se alevanta d'entre as devasta??es perpetradas pelo camartélo, pela picareta e pelos boi?es de cal delida, e apesar de se haverem dirigido sem tino, sem gosto, sem harmonia as restaura??es dos edificios que as injurias do tempo em parte haviam arruinado, resta ainda muito que estudar e admirar nesses monstros. Até, em alguns delles, é possivel supprimir, pela imagina??o, o moderno e p?r em logar deste o antigo. A poesia ainda n?o desamparou de todo o mutilado monumento.
Mas durar?o por muito tempo esses restos da mais formosa e magnifica de todas as artes? N?o o esperamos; mas lavraremos aqui, ao menos, um protesto contra o vandalismo actual. Nossos paes destruiram por ignorancia e ainda mais desleixo: destruiram, digamos assim, negativamente: nós destruimos por idéas ou falsas ou exageradas; destruimos activamente; destruimos, porque a destrui??o é uma vertigem desta epocha. Feliz quem isto escreve, se podesse curar alguem da febre demolidora; salvar uma pedra, só que fosse, das m?os dos modernos hunos!
II
Falámos da decadencia da architectura durante seculo e meio; porque as manifesta??es dessa decadencia foram sempre as mesmas em t?o largo perido. Vê-se a arte na sua lenta agonia rodeiada de curandeiros que se prop?em sará-la, mas que a transfiguram, sem alcan?arem qual é o achaque intimo que a devora: vêmos acumular columnas a proposito e desprositadamente: vêmos gesso, ouro e talha: vêmos converter os velhos monumentos em monstros de Horacio; p?r ao lado da torre ou do curucheu gothico zimborios á Buonaroti ou portadas á Barrozio; enxertar a capella do seculo XVIII na parede de nave do seculo XIV semelhante a um viveiro de cogumélos, nascidos por entre as fisgas humidas da pedraria, a favor da meia obscuridade daquellas profundas arcadas: vêmos alteiar edificios que representam o gosto architectonico do mercador de retalho, e erguer templos cujo indecente e ridiculo elogio é o de serem _bonitos_: vêmos as grandes pra?as de Lisboa, bem esquadriadas, bem symmetricas, bem prosaicas: vêmos igrejas, como a da Encarna??o ou a dos Martyres, caiadas, pulidas, alindadas, onde n?o móra um só pensamento de Deus. A arte entendeu-se assim por largos dias. Ao passo que se imprimia a Poetica do padre Freire, que se coroava a Osmia, e que se publicavam por ordem superior as poesias, assim chamadas, de Ribeiro dos Sanctos, encostavam-se columnas disformes pelas paredes de um pio armazem, conhecido vulgarmente pelo nome de igreja de S. Domingos, ladeiavam-se com ellas os portaes dos edificios publicos e as frestas do atrio tyscio do convento do Cora??o de Jesus. No meio daquellas semsaborias architectonicas parecia sentir-se uma tendencia instinctiva para a regenera??o; mas essa tendencia, que buscava uma solu??o ao problema nas tradi??es da arte romana ou antes grega, n?o podia lá encontrá-la. Fora o renascimento; fora a admira??o dessas tradi??es, até certo ponto justa, mas exagerada depois, que dentro de pouco mais de cem annos chegara, de modifica??o em modifica??o, até a architectura do seculo XVII, á architectura da Sé nova de Coimbra, do Seminario de Santarem, á architectura jesuita. N?o só a regenera??o litteraria e a politica, mas tambem a da arte devia consistir em considerar o renascimento, n?o como phase, mas como lacuna na vida das na??es christans, das sociedades novas; em descer logicamente do crer e sentir da sua idade viril. Embora a arte seja uma só; embora seja sempre e em toda a parte a express?o sensivel do ideal, tanto este como as suas manifesta??es é que s?o diversos nas diversas epochas e em sociedades differentes. Naquelle dilatado periodo de decadencia o que sobretudo faltava á architectura era a luz, o horisonte, a atmosphera respiravel, em que podesse viver e produzir.
A decadencia, porém, na epocha em que vivêmos é outra, e mais profunda. Já n?o ha a corrup??o do gosto, o inapplicavel das theorias, o erro do entendimento. Agora é o instincto barbaro,
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