Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II | Page 3

Alexandre Herculano
pintaram de ochre para poupar alguns palmos de silharia, alguns palmos de marmore n'uma collina de marmore. O plano de qualquer obra publica desta epocha dir-se-hia sempre tra?ado na mente de um negociante hollandês. O despotismo ignorante e presumido estragara a arte com a puerilidade; o despotismo illustrado estragou-a com a raz?o. Mafra é um poema da Fenix-Renascida: a Lisboa do marquez de Pombal um soneto de Diniz ou uma ode de Gar??o. A cidade depois do convento é o Novo-methodo do padre Pereira expulsando das escholas latinas a grammatica do padre Alvares.
Morreu D. José I, facto insignificante em si, mas grave pelas suas consequencias. Com a morte desse homem desappareceu da scena politica o forte espirito que reinara em vez delle. Portugal so?obrou ent?o; apenas sobre o seu vortice de perdi??o boiaram por algum tempo as letras e a sciencia sustentadas ao de cima pelo bra?o do duque de Laf?es. A architectura, que n'um paiz pequeno e pobre, como o nosso, depende quasi exclusivamente do governo para existir, n?o decahiu porque estava já decadente: o que fez foi retroceder das fórmas mesquinhas, mas graves e simples, que adoptara, para os fogaréus e burriés e repolhos e espiraes e grinaldas da epocha anterior. Quereis saber o que ella foi d'ahi ávante? Olhae para o mais notavel edificio do subsequente reinado, para o convento do Cora??o de Jesus. Como o pensamento unico do governo era desmentir o bom, o mau, o indifferente, tudo, em summa, quanto se fizera no antecedente reinado, buscou-se restaurar a architectura de Mafra, menos a vastid?o, menos a opulencia. Caricatura de caricatura. Aquelles portaes microscopicos, aquellas columnas disformes e deformes, encostadas á portada da igreja, especie de polypos de pedra, guardados alli para servirem de pilares em outro monumento que delles viesse a carecer; aquelle atrio que recorda o vomitorium dos amphitheatros romanos; aquellas torres onde n?o se pouparam nem columnellos inuteis, nem franjas e avellorios de marmore; tudo isso é amostra do gosto da epocha, gosto que tem durado e que ainda campeia nas fachadas de varios armazens ao divino construidos nos ultimos sessenta annos e baptisados com a pomposa denomina??o de templos.
Tal foi em Portugal a architectura durante seculo e meio. O renascimento, que condemnou em peso, como barbaras, as origens das na??es modernas e especialmente o que desdizia das diversas manifesta??es da civilisa??o grega e romana, envolveu n'esta condemna??o, em muitos casos injusta ou inepta, os admiraveis monumentos de arte que a idade media legara aos tempos modernos. As gera??es subsequentes, educadas n'uma adora??o irreflexiva de tudo quanto viera da Grecia e de Roma pagans, n?o podiam comprehender a sublime magestade e, digamos assim, o espiritualismo da arte christan. Os pa?os, os castellos, as pontes, os cruzeiros, as galilés das pra?as, as portas, as torres, os pelourinhos das cidades e villas, construidos desde o XI até o XV seculo quasi que desappareceram. Conservaram-se alguns mosteiros e sanctuarios, algumas cathedraes e parochias, n?o por serem obras da arte, mas por serem logares consagrados a institui??es religiosas, e talvez por terem faltado os recursos para os substituir por novas edifica??es.
Ainda assim, restar-nos-hiam hoje em mosteiros, em cathedraes e em outros edificios consagrados ao culto inestimaveis monumentos, se nesta terra, desamparada de Deus e da arte, tivesse havido sequer um vislumbre de gosto e de venera??o pelo passado, e n?o fosse justamente entre o clero, isto é, entre os guardadores naturaes desses mesmos monumentos, que surgissem os seus mais funestos adversarios. Porém os bispos sabiam theologia e direito canonico; os conegos e parochos, alguns sabiam latim; os frades, pelo menos os membros das antigas ordens monachaes, eram eruditos e homens de letras; mas nem os bispos, nem os conegos e curas d'almas, nem os frades entendiam de architectura. Entregaram tudo aos architectos e mestres de obras, que estragaram tudo. Quasi que escaceiava a pedra para se converter em cal. Os batefolhas n?o tinham m?os a medir. Columnas, capiteis, abobadas, torres, portaes, arcarias, claustros, tudo foi caiado, dourado, enfeitado, estragado. Procurae na maior parte das nossas sés, das nossas collegiadas, das nossas velhas parochias, um desses pilares polystylos, desses capiteis e cimalhas rendadas, desses bocetes e penduroes variados, dessas gargulas ás vezes insolentes, ás vezes terrificas, ás vezes finamente epigrammaticas, e nada achareis do que foi. Aquelles livros de pedra, complexos como os poemas de cavallaria, ingenuos como os poemas do Cid ou dos Nibelungen, converteram-se em palimpsestos donde se raspou a historia das cren?as, dos costumes, dos trajos, das alfaias de antigas eras; onde se apagaram os vestigios de successos notaveis, de dramas populares, de lendas poeticas, e até retratos unicos de var?es singulares. Nesses livros preciosos, em vez do seu primitivo conteúdo, só achareis as rasuras que m?os ineptas ahi fizeram e os caracteres que sobre essas paginas, outrora eloquentes, tra?ou a peior das barbarias, a
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