Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I | Page 7

Alexandre Herculano
Carta como a mais alta manifesta??o da sabedoria humana. Nesta parte os liberaes eram em geral eclecticos. Tanto o partido da revolu??o, como o anti-revolucionario nenhum tinha em si unidade completa de principios; nem entre um e outro havia sen?o antinomias parciaes quanto ás doutrinas de direito politico. No primeiro, que tomava por base das ulteriores reformas uma constitui??o democratica, exagerada até o despotismo das turbas, havia individuos para quem, como o tempo mostrou, as theorias da democracia ainda mais moderada eram altamente odiosas, ao passo que outros forcejavam por chegar, sen?o á republica, ao menos a institui??es republicanas. No partido cartista dava-se o mesmo phenomeno. Todas as modifica??es do governo representativo tinham ahi fautores; tinham-nos, talvez, até, as doutrinas do absolutismo illustrado. A meu ver, a distinc??o profunda e precisa entre o cartismo e o septembrismo consistia em negar o primeiro o principio da revolu??o, dentro das institui??es representativas livre e solemnemente adoptadas ou acceitas pelo paiz, e em affirmá-lo o segundo. Tudo o mais em ambos os campos era fluctuante e vago.
é essa a explica??o de um facto que os homens daquelle tempo poder?o testemunhar recorrendo ás proprias reminiscencias. Alistaram-se nas fileiras cartistas talvez mais individuos que haviam sido adversos aos ministros derribados, do que amigos e parciaes seus, ao passo que alguns destes abra?avam sem hesitar a revolu??o. De uns e de outros se deve crer que preferiam nobremente as suas opini?es aos seus interesses, ás suas affei??es ou inimizades pessoaes. Para muitas dessas opini?es havia logar em ambas as parcialidades. Os que, porém, só attendiam á moralidade e cordura dos actos de administra??o ordinaria, lan?avam-se, por via de regra, na revolu??o; os que, sem desattender taes quest?es, sem approvarem corrup??es ou iniquidades a que eram extranhos e que tinham condemnado, remontavam a mais elevadas considera??es de ordem moral e politica, abra?avam o cartismo. N?o falo dos especuladores que se resolviam conforme as vantagens que se lhes antolhavam n'um ou n'outro campo. O proceder destes taes tinha na consciencia publica ent?o, como depois, como sempre, uma qualifica??o conhecida.
Mas, dir-se-ha, como nessa epocha se disse, que entre o cartismo e o septembrismo se dava uma distinc??o mais radical e profunda. A Carta, outorgada por D. Pedro IV, representava o direito divino dos reis; era uma concess?o de senhor, em vez de um pacto social, ao passo que a constitui??o de 1822, derivada da soberania popular, era a consagra??o das doutrinas democraticas. Considerada a esta luz, a revolu??o adquiria as propor??es de um facto gravissimo, porque assentava a liberdade em novos fundamentos, e vinha a ser um passo gigante dado na estrada do progresso politico.
Na epocha, quasi exclusivamente liberal, em que se passavam aquelles successos, a resposta do cartismo a estas allegac?es parecia facil. N?o sei se o seria agora; agora que se tem achado e demonstrado, segundo parece, n?o prestar para nada o liberalismo. As intelligencias vigorosas da mocidade hodierna têem aberto caminho a theorias ou novas ou rejuvenescidas que nós os velhos de hoje e mo?os de ent?o ou ignoravamos ou suppunhamos estereis, e talvez pueris, e de que sorriamos, quando alguns engenhos que reputavamos t?o brilhantes como superficiaes, buscavam, evangelisando-as, jungir por meio dellas as turbas, más porque ignorantes, odientas porque invejosas, espoliadoras porque miseraveis, ao carro das proprias ambi??es. A quest?o da soberania popular n?o era precisamente o que preoccupava mais os entendimentos, cultos, mas tardos, daquelle tempo, e a democracia n?o apaixonava demasiado os animos, sobretudo os animos dos que haviam pelejado desde os A?ores até Evoramonte as batalhas da liberdade, ou padecido na patria durante cinco annos, sem o refrigerio sequer de um gemido tolerado, as orgias do despotismo. Uns tinham visto de perto a face da democracia; tinham-na visto por entre a selva de oitenta mil baionetas que fora preciso quebrar-lhe nas m?os para a liberdade triumphar; tinham-na visto nas chapadas e pendores das collinas que circumdam o Porto, até onde os olhos podem enxergar, alvejando-lhe nos hombros os cem mil embornaes preparados para recolher os despojos da cidade da Virgem, da cidade maldicta, rendida e posta a sacco; outros haviam-na visto de machado e de cutello em punho, mutilando e assassinando prisioneiros inermes e agrilhoados. O liberalismo achara a catadura da democracia pouco sympathica. Restava a soberania popular. Essa funccionara durante cinco annos e dera mostra de si. A soberania do direito divino, repartindo com ella o supremo poder, provava que n?o era t?o ignorante como a faziam. Tinha litteratura. Applicava, modificando-o, o verso:
Divisum imperium cum plebe Caesar habet.
As classes inferiores constituiam ent?o, como hoje, como h?o de constituir sempre, a maioria do paiz, e foi a esta maioria que ella entregou os direitos que cedia. Era a legitimidade consagrando outra legitimidade. Amavam-se, comprehendiam-se ambas. é que entre as extremidades ha contacto ás vezes. A democracia americana cuida ter inventado a
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