Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I | Page 6

Alexandre Herculano
Faltava o assumpto. O derribar um ministerio n?o o subministra. Basta para isso a ac??o mais ou menos lenta, mas segura e pacifica, da liberdade da palavra, da imprensa e do voto. O povo que com estes recursos n?o sabe tirar os seus negocios das m?os de quem lh'os gere mal, é um povo ou que ainda n?o chegou á maioridade ou que já se arrasta na senilidade. Urgiam, porém, as circumstancias. á falta de outra cousa, proclamou-se irreflexivamente a constitui??o de 1822 com as modifica??es que decretassem as futuras constituintes.
Tinha-se, pois, feito uma revolu??o para obter um projecto, um texto de discuss?o constitucional? Se o intuito dos amotinados f?ra só derribar os ministros, o facto era excessivo, injustificavel e portanto illegitimo e criminoso; se porém o motim, nobilitado em revolu??o, tinha por alvo alterar as institui??es, n?o menos digno de reprova??o se tornava, porque era um crime inutil. A Carta encerrava em si o processo da propria reforma, processo aliás prudente, regular, exequivel. Partir da constitui??o de 1822, acervo de theorias irrealisaveis, se theorias se podiam chamar, de institui??es talvez impossiveis sempre, mas de certo impossiveis n'uma sociedade como a nossa e na epocha em que taes institui??es se iam assim exhumar do cemiterio dos desacertos humanos, era mais que insensato. A revolu??o, reconhecendo a necessidade de reformar o codigo que restabelecia, condemnava-o, e condemnava-se.
Parece-me que me n?o engano se disser que, em geral, aos liberaes mais illustrados e sinceros a nova situa??o politica repugnava altamente. Ponderavam que a mudan?a das institui??es politicas de qualquer paiz por via de uma revolu??o é sempre um abalo profundo cheio de riscos, e que mais de uma vez, longe de produzir o bem, tem conduzido as sociedades á sua ruina. Sem rejeitar de modo absoluto as revolu??es como elemento de progresso, é certo que ellas s?o um meio extremo. Só, talvez, a necessidade de combater o despotismo as justifique, porque só debaixo de tal regimen s?o impossiveis quaesquer outras manifesta??es da opini?o publica, e n?o existe campo diverso onde a lucta do direito contra a for?a, das idéas novas contra os velhos abusos possa travar-se. Em 1836 essas manifesta??es n?o tinham porém obstaculo algum, e o campo onde as doutrinas podiam debater-se, os interesses contrapor-se, os partidos digladiar-se, era amplissimo. Se em taes circumstancias uma revolu??o fosse legitima, quaes seriam aquellas em que se lhe negasse a legitimidade?
Depois, nas proprias rela??es politicas, o espirito humano n?o se dirige unicamente pela reflex?o. As paix?es e affectos modificam e alteram as suggest?es do raciocinio; porque o homem imprime necessariamente em todos os actos da vida as condi??es do seu ser. A favor da manuten??o da Carta n?o militava só a boa-raz?o; militavam affectos, e affectos profundos. A Carta havia sido o grito de guerra do campo liberal em lide de um contra dez. Havia sido, digamos assim, a traduc??o moderna do Sanctiago! de Affonso I, do S. Jorge! do Mestre d'Aviz. Nas reminiscencias indeleveis de muitos de ent?o, (bem poucos hoje) estavam ainda os vivas á Carta proferidos por labios que iam cerrar-se na morte, quando as bayonetas inimigas desciam inexoraveis sobre o peito ou sobre o ventre dos nossos soldados feridos e derribados[1]. Em nome da Carta se tinha desfeito o triangulo fatal do patibulo, e quebrado o ferrolho da masmorra e da enxovia, em nome della se tinham aberto para os foragidos as portas da patria que davam para os desertos do desterro, do desterro que é sempre solid?o e desventura. A Carta fora como a estrella polar da esperan?a nos dias, t?o longos, da fome, da nudez, das tempestades, do desalento. Vivia depois como envolta na saudade desses dias, acre e quasi dolorosa saudade, que nós os velhos ainda sentimos, mas que será provavelmente uma cousa inintelligivel para as gera??es novas.
A raz?o, pois, e o sentimento falavam a muitos energicamente em favor das institui??es annulladas. Falavam tambem a favor dellas a consciencia e a dignidade humanas. Tinham jurado manter essas institui??es milhares e milhares de homens; milhares e milhares de homens as tinham nobremente mantido com o sangue, com as priva??es, com a resigna??o illimitada no sacrificio. Podem valer pouco os juramentos politicos; póde, até, ser absurdo o juramento em geral. Mas a quebra de promessas solemnes e espontaneas, seja qual for a sua formula, será sempre uma villania emquanto tiverem culto a honra e a lealdade.
Taes eram os principaes incentivos que induziam grande numero de liberaes a constituirem um partido hostil á nova ordem de cousas. A denomina??o de cartista, que esse partido adoptou, n?o correspondia rigorosamente ás causas da sua existencia, nem aos seus intuitos ou á sua indole. Mas representava até certo ponto isso tudo, ao mesmo tempo que era conciso, e facilmente comprehensivel para o vulgo. O cartista n?o reputava todas as institui??es, todos os preceitos da
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